Folha de S. Paulo


O 'faz de conta' e as pesquisas

O homem foge da dor. Nem que para isso seja necessário criar um mundo imaginário. Um "Faz de Conta".

É estratégia de sobrevivência.

Recentemente, na Ilustríssima - 08/09, Reinaldo Lopes escreveu em seu artigo "A origem das histórias", que talvez o ser humano passe mais tempo no mundo do "faz de conta" do que no real. Porque o mundo real é duro demais e o mundo do "faz de conta" é mais seguro.

Para realizar suas potencialidades, o ser humano precisa sentir-se seguro, sobretudo. Quando lemos os resultados de pesquisas sobre a vida nas grandes cidades, é importante ter em conta alguns paradoxos e contradições, para não errarmos a avaliação.

Há uma contradição básica, ainda pouco explorada e muito menos explicada. Quando você pergunta se a pessoa se sente feliz, em torno de 75%,em média, responde positivamente. Ou muito ou razoavelmente feliz.

Quando se indaga se o entrevistado acha que os outros em volta dele são felizes, a resposta majoritária é não. Ou seja, quase o todo mundo se acha feliz e a maioria crê que os outros são infelizes; levam uma vida ruim.

É uma impossibilidade. Se 75% se acham e estão realmente felizes, transpareceria para os outros.

Acaba de sair tradicional pesquisa da Rede Nossa São Paulo feita pelo Ibope. Embora a população indique insatisfação em diversas áreas e a questão da mobilidade realce o sofrimento dos paulistanos com o trânsito, a pesquisa revela que só 16% da população considera a cidade um lugar ruim/péssimo, 23% a consideram regular e 61% --larga maioria-- apontam a cidade um lugar ótimo/bom.

Segundo a enquete, a média da avaliação da população sobre a qualidade de vida em SP vem aumentando. Saiu de 6,5% em 2008 para 6,9% em 2013.

Nossa São Paulo

Os problemas aumentaram, o congestionamento cresceu e a qualidade de vida melhorou. Estranho. Vale a pena pesquisar. Algo está incoerente. O que faz tanta gente gostar de um lugar em que elas mesmas apontam tantas carências e defeitos?

Apesar de as pessoas gastarem 2h15min, em média, para se deslocarem, e isso incomodar muito, quando elas apontam as três áreas mais problemáticas da cidade, o transporte público só aparece em quinto lugar e o trânsito em quarto, ambos com menos da metade das menções sobre saúde.

O que, de fato, mais impacta as pessoas no dia a dia: saúde ou trânsito?

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Juntando as contradições citadas, é possível imaginar que, em um mesmo questionário, os entrevistados respondam parte das perguntas pensando em si e parte pensando em outros: no coletivo. Acham que o coletivo tenha uma vida pior do que a que levam individualmente. E que sejam mais condescendentes com os problemas que enfrentam do que parece.

Acompanhando de perto uma pesquisa dessas, constata-se que as pessoas avaliam com muito mais tolerância, quando não estão expostas. E, para dificultar a interpretação dos resultados, há também o viés do "politicamente correto": procurar responder o que teria mais aceitação pública.

Pesquisas são fundamentais e sempre produzem dados relevantes. Mas a interpretação deve ser cuidadosa. Não se pode fazer análise imediata e simples. Nelas, o mundo real e o do "faz de conta", que é o lugar onde todos nos refugiamos para estarmos mais seguros, se misturam.

Onde e em que proporção? Não o sabemos. A forma para chegarmos a um resultado mais próximo da realidade é a pesquisa etnográfica, que se baseia no contato das pessoas, na observação e no relacionamento.

O instituto Data Popular tem aplicado esse método. O pesquisador vai viver como vizinho do pesquisado e observa o dia a dia das pessoas. O que fazem de fato.

Constata-se que há diferenças entre o que as pessoas respondem numa pesquisa e aquilo que falam e fazem no cotidiano. E sobre o que pensam que os outros fazem.

O ser humano é complexo. Para políticas públicas urbanas, é melhor juntar às pesquisas tradicionais uma boa pesquisa etnográfica. Ela permite identificar melhor o nosso "faz de conta", estar mais próximo do mundo real e das soluções que ele necessita de fato.


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