Folha de S. Paulo


Bernardo Carvalho fala do fanatismo religioso que conduz a massacres

Karime Xavier - 24.ago.2016/Folhapress
O escritor Bernardo Carvalho
O escritor Bernardo Carvalho

Existem então pessoas sem alma. Ao que parece, os assassinos em série, criminosos psicopatas, têm um alto grau de inteligência e são vazios de sentimentos. Desalmados, como se diz.

Ridley Scott retomou a saga "Alien" com "Prometheus" e "Alien: Covenant". Agora, aquela terrível máquina de matar, desprovida de piedade, empatia ou comoção, não está só. Veio compartilhada com outro instrumento de crueldade, que tem forma humana, fria e dissimulada. Seus poderes intelectuais são vertiginosos. É o robô.

No primeiro "Alien", ele era vinculado à maldade difusa: agente de uma companhia interessada no bicharoco como máquina de guerra. Tornou-se enfim protagonista, e busca uma aliança, um pacto, como sugere o título [covenant], com aqueles alienígenas dotados de violência superior. Nisso, opõe-se à tripulação de casais unidos por amor.

Essa obsessão por predadores impiedosos demonstra a coerência de Scott ao assumir em 2001 a direção da sequência de "O Silêncio dos Inocentes": "Hannibal".

"Penso que ele é tão normal quanto você ou eu. Ele apenas gosta disso", declarou Scott a respeito do psicopata. Há, nesse filme, o seguinte diálogo: "O senhor acha que um homem poderia tornar-se tão obcecado por uma mulher num único encontro?". Ao que Hannibal responde: "Poderia ele diariamente sentir uma fisgada de fome por ela e encontrar alimento na mera visão dela? Penso que sim. Mas iria ela ver através das barras de sua angústia e sofrer por ele?".

Hannibal tem pulsão absoluta de maldade. Na vida de todos os dias, essa maldade também existe em formas mais ou menos intensas: é a maldade relativa.

Pelo que sei, a definição do perverso narcisista como patologia grave é recente. São, com frequência, prodigiosos manipuladores. Existem há muito tempo. Teseu, o herói mitológico, recebeu os dons da sedução, astúcia e coragem. Não teve escrúpulos em seduzir, manipular e abandonar Ariadne. Iago e Lady Macbeth são casos literários ilustres. "Gotas d'Água em Pedras Escaldantes", filme de François Ozon, pode entrar na lista. A literatura popular está cheia de vilões desumanos, cuja única função é fazer o mal: não são tão inverossímeis assim.

O narcisista perverso desconhece a real empatia. É estratégico e utilitário porque, nas relações humanas, busca sempre seu benefício, tirando vantagem ou prazer. O outro não passa de objeto manipulado. Sua violência indireta cria e entretém laços de dependência. "É possível destruir alguém apenas com palavras, olhares, subentendidos", escreveu Marie-France Hirigoyen, especialista na questão.

Provocar sentimentos de culpa é sua estratégia. A violência moral no cotidiano desenvolve a culpa no outro para diminuí-lo e dominá-lo. O predador tortura de modo contínuo, para seu próprio gozo. Porque gosta, como diria Ridley Scott.

Há os sedutores que, no primeiro encontro, dão a impressão de excepcional empatia. Conheci duas pessoas diferentes que me disseram, com vaidade, a mesma frase: "Transformo quem eu quiser em amigo de infância". Não se importam nada com essa amizade, intensa apenas para a vítima.

Outras situações surgem numa conexão binária imediata, que o sedutor passa a cultivar. Esse eixo atravessa o último livro de Bernardo Carvalho, "Simpatia pelo Demônio", publicado em 2016. Já se tornou um de meus favoritos: eu o ponho ao lado de "Nove Noites".

O encontro se dá num teatro, em Berlim. Alguém abre "um sorriso franco e encantador", e o principal personagem, o Rato, fica "paralisado como se tivesse sido atingido por um raio". "Sentiu que estava perdido." Quem se debruça sobre esses casos sabe que tais relações são muito difíceis de serem rompidas, tal a força da dependência criada.

Simpatia Pelo Demônio
Bernardo Carvalho
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Mas o livro, além desse longo percurso pessoal e doloroso, projeta também a manipulação num campo coletivo: o do fanatismo religioso que conduz a massacres. Uma faz eco à outra. Aqui, a crença anula a alma.

"A violência para eles não é um meio entre outros. A violência é o fim e a purificação. Era inevitável que essa violência absoluta, religiosa, exercesse uma atração irresistível sobre jovens dispostos a abandonar o conforto de vidas anódinas e trocá-lo pela aventura do horror. As adesões crescem dia a dia e a expressão de felicidade em seus rostos, enquanto degolam indivíduos e trucidam populações, leva a crer que sejam os adoradores de um novo culto da morte em massa." Bernardo Carvalho foi admirável em mostrar que o demônio sabe manipular tanto o amor divino quanto o humano.


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