Folha de S. Paulo


A cultura elevada nos Estados Unidos e os críticos americanos

Ela foi escultora e era de Nova York. Foi também multimilionária. Chamava-se Gertrude Vanderbilt Whitney. Reuniu obras de artistas americanos contemporâneos durante anos. Em 1929, decidiu doar sua coleção ao museu Metropolitan. A instituição recusou, porque a arte nacional não lhe parecia digna de ser exposta naquelas salas augustas, ao lado dos gênios europeus maiores.

A senhora Whitney não se deu por vencida e criou o museu Whitney, dedicado aos norte-americanos. Ao mesmo tempo, sua arqui-inimiga, a socialite Abby Aldrich Rockefeller, esposa de John D. Rockefeller, constituía o MoMA, destinado aos modernos europeus e onde obras locais não entravam.

Hoje, o MoMa apresenta algumas salas discretas com obras estadunidenses dessa época, mas a situação não mudou muito. Foi preciso que surgisse a abstração norte-americana, no pós-guerra, para vir o reconhecimento internacional, sobretudo europeu, provocando em retorno a celebração interna da produção nativa. Os artistas americanos da primeira metade do século 20, porém, permanecem até hoje numa penumbra.

São sintomas de inferioridade cultural. Há uma dificuldade entre os intelectuais e homens cultos dos Estados Unidos em lidar com a cultura elevada. Precisam de indicadores exteriores às obras para formarem um juízo. Por exemplo, uma revista como a francesa "Cahiers du Cinéma", capaz de pôr na capa Robert Bresson ao lado de Wes Craven, com análises muito sérias dos dois, não me parece ser possível nos Estados Unidos.

A própria distinção entre as palavras "movies" e "films", a primeira com ressonâncias populares, a segunda com um tom intelectual, já é um indício classificatório. O resultado é que os EUA produzem o melhor cinema do mundo e os piores críticos. Ali, Hollywood só pode ser vista como mero entretenimento.

Em 1949, Russell Lynes, o editor da revista "Harper's", publicou um artigo sobre as noções de "highbrow, lowbrow e middlebrow" (cultura elevada, baixa cultura, cultura intermediária). Nele, uma fotografia mostra três homens de costas: o primeiro, "highbrow", alto e elegante, terno bem cortado, as mãos cruzadas nas costas, admira um Picasso; o segundo, "lowbrow", gordinho, em mangas de camisa, suspensório, olha para o desenho de uma pin-up; enfim, com terno pré-fabricado, mãos no bolso do paletó, o último, "middlebrow", observa "American Gothic", de Grant Wood.

Para se atingir a categoria cultural e social mais elevada, é preciso respeitar convenções visíveis de gosto e de classe. Nelas, Grant Wood tem seu lugar, inferior ao de Picasso.

"American Gothic" é uma imagem universal com força de símbolo. Mas essa pintura meticulosa, realista, executada no espírito flamengo do século 15, não se encaixa nos movimentos europeus considerados como modernos. É vista como sub-pintura.

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Quadro
Quadro "American Gothic", de Grant Wood, da coleção do Art Institute of Chicago

Trata-se, porém, de uma obra-prima. Wood executa os detalhes mais ínfimos com observação nítida sob luz de grande mestre. Fica na memória, para sempre, esse casal de camponeses do Meio-Oeste, e sua forquilha de feno interposta entre eles próprios e o espectador, instrumento de trabalho e arma de defesa. A ponta dos três dentes brilha como uma ameaça. O puritanismo religioso se exprime nas fisionomias fechadas, nas roupas severas, na janela gótica. Mundo de rigores e desprazeres.

Pude ver em Paris uma exposição intitulada "A Pintura Americana dos Anos 1930 "" A Era da Ansiedade". Trata-se de tímida incursão dessa arte na galáxia do prestígio cultural europeu. Tímida porque o recorte no tempo é estreito, limitando-se aos anos da Grande Depressão, ignorando o início do século. O número de quadros é reduzido: apenas 46 telas. Embora Edward Hopper, Grant Wood, Reginald Marsh e Thomas Benton estejam presentes, há lacunas sérias: Norman Rockwell e Rockwell Kent, outros grandes mestres, faltaram.

Ainda assim, percebe-se que, indiferentes à modernidade chique dos europeus, os artistas americanos criaram arte poderosa. Para eles, modernidade não significava busca de novidades formais. Debruçando-se sobre os problemas americanos contemporâneos, traço constante e poderoso dessa cultura, o novo brotava por si só. Tal universo artístico, que teve para a arte pop o papel de precursor, foi também crítico e militante.

Aqui vão três exemplos em conclusão: Alice Neel e seu fenomenal retrato do líder comunista Pat Whalen; Paul Cadmus e seu empenho pela causa homossexual –em 1930; Joe Jones e sua denúncia contra o racismo. (Algumas imagens estão aqui )


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