Folha de S. Paulo


Mistura de certeza do fim e ignorância sobre ele é o que nos torna humanos

E se existisse um exame de sangue capaz de detectar uma espécie de pré-Alzheimer? Quem estaria disponível para espreitar o seu futuro?

Li sobre a possibilidade no "The New York Times". Uma mulher de 49 anos, Julie Gregory, submeteu-se a um teste genético não relacionado com a demência. Mas o resultado trouxe uma informação amarga: uma variação de gene que, segundo os especialistas, está fortemente ligada ao Alzheimer.

Confrontada com o diagnóstico, Julie recorreu ao neurologista e fez a pergunta óbvia: haverá alguma forma de impedir a fatal sentença? O médico não teve nada para lhe dizer.

Eis o dilema que caminha para nós: saber ou não saber. Até porque existem vantagens no conhecimento. Cura? Ainda não. Mas se um número significativo de "pré-doentes" for confrontado com essa espécie de sala de espera mortuária, a pressão para melhores tratamentos irá aumentar.

Além disso, imagino outra vantagem: quem conhece o seu fim, repensa os entretantos. E se esse fim for prematuro, as prioridades serão repensadas prematuramente. Sabemos que não temos todo o tempo do mundo. Mas essa certeza não faz parte dos nossos cálculos cotidianos, principal razão para perdermos tanto tempo com ocupações que não interessam e gente que não merece.

Uma mortalidade "clara e distinta", como dizia o filósofo, afina essas dispersões. E, quem sabe, pode convidar a uma existência com conta, peso e medida.

Ou talvez não. E é nesse "talvez não" que eu me revejo.

Anos atrás, passeando por Londres, resolvi visitar a capela do King's College. Na porta de entrada, encontrei a inscrição latina: "In morte non divisi".

Literalmente, significa "na morte não divididos". Mas o que interessa não é o significado literal; é uma possível interpretação filosófica.

Sim, a morte não divide aqueles que acreditam no reencontro eterno. Mas é razoável olhar para a frase com outros olhos: a morte não divide, não discrimina. Todos somos iguais perante ela.

Existem dois significados nesse pensamento. O primeiro é que ninguém escapa à extinção. O segundo, talvez mais importante, é que ninguém conhece os contornos dessa extinção.

No fundo, aquilo que nos torna humanos é essa mistura, salvífica e engenhosa, de certeza do fim e ignorância sobre ele. Vivemos, planejamos, amamos, deixamos obra e descendência porque, uma vez mais, não temos todo o tempo do mundo.

Mas não vivemos como escravos, desesperadamente e desgraçadamente, com a certeza oposta de que não temos tempo nenhum.

Estou disponível para fazer um exame, qualquer exame, e conhecer com anos de antecedência os contornos da minha agonia?

Não, não estou. Sei que um dia a mais é sempre um dia a menos. Mas, aqui entre nós, eu não tenho pressa.


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