Folha de S. Paulo


Um homem livre deve depender apenas do seu próprio juízo

Pascal Pavani/AFP
Os chefs franceses Sébastien Bras (à esq.) e Michel Bras, filho e pai, em 2014
Os chefs franceses Sébastien Bras (à esq.) e Michel Bras, filho e pai, em 2014

Alguém dizia que os piores inimigos de um escritor são o álcool e os elogios. Concordo. Embora, aqui entre nós, os elogios sempre me pareceram mais intoxicantes do que o álcool.

Parafraseando a geração "beat", eu também vi as melhores mentes da minha geração destruídas pelo elogio precoce, embaladas por uma ilusão de unanimidade, entregues perdidamente a sereias venenosas.

Por isso compreendo a atitude inédita de Sébastien Bras, 46, chef do restaurante francês Le Suquet. Nesta semana, li no "The Guardian" que o sr. Bras pediu para que lhe fossem retiradas as três estrelas Michelin que ostentou durante quase 20 anos. Todos os grandes cozinheiros sonham com a consagração? Talvez. Mas Bras está cansado da afluência –e da exigência.

Corrijo. O problema não está propriamente na exigência pessoal. Está na autoritária exigência de terceiros. Todos os anos, afirma o chef, os jurados do prêmio visitam o seu restaurante. Uma, duas, três vezes. Chegam anônimos, partem anônimos. Isso significa que, a qualquer altura, os seus pratos estão sob avaliação.

O desgaste não compensa. E será preciso lembrar o histórico de chefs que, depois das estrelas, decidiram ir fazer companhia às ditas? O suicídio do chef Bernard Loiseau, em 2003, continua a pairar sobre a tribo.

Entendo Sébastien Bras. E, para os incrédulos com a atitude, aconselho bibliografia adequada. Os estoicos são, como sempre, o melhor começo. Qual o caminho para a serenidade?

Epicteto (55-135 d.C), escravo romano, resumiu o ponto com clareza intemporal: é preciso distinguir as coisas que estão sob o nosso controlo –e as que não estão. No primeiro grupo encontramos os desejos ou os impulsos. No segundo, o corpo ou a reputação.

Verdade que, para uma plateia moderna, o corpo e a reputação podem ser moldados com artimanhas várias: malhação ou cirurgia (para o corpo); propaganda ou corrupção (para a reputação).

Mas não é possível vencer a batalha da decadência física nem controlar todos os espíritos que debitam sobre nós. As causas perdidas, apesar do seu charme romântico, não deixam de ser perdidas.

A conclusão de tal raciocínio é que a busca da fama é um exercício espúrio e contraproducente para a serenidade da alma: a fama depende do juízo dos outros; um homem livre deve depender apenas do seu próprio juízo.

Eis, em resumo, a batalha do chef Sébastien Bras para os próximos anos: "Redefinir o que é essencial" –para ele, não para os inspetores.

E a Michelin? O que pensa do assunto?

Segundo parece, "respeita" a decisão do chef. Mas acrescenta que a remoção da lista vai demorar. Contra a vontade dele, o restaurante continuará nos guias –e o chef condenado aos aplausos.

Aliás, para que a ironia fosse total, só faltava que os inspetores continuassem a visitá-lo –todos os anos, várias vezes por ano– impedindo a sua luta pela obscuridade.

Meu Deus: onde está um Kafka quando mais precisamos dele?


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