Folha de S. Paulo


Para pré-adolescentes e pré-universitários, só existe a pós-verdade

Angelo Abu/Editoria de Arte/Folhapress
Contra de 12.set.2017.

Um amigo contava-me há tempos que tivera uma conversa séria com o filho pré-adolescente. Sobre a internet. Sobre os perigos da internet.

Não, o problema não estava em sites pouco frequentáveis. Estava na informação "inofensiva" de sites igualmente "inofensivos". O filho acreditava em tudo que lia na tela. Se estava na rede e se alguém tivera o poder de entrar nessa rede, os fatos só podiam ser verdadeiros.

O pai explicou-lhe que não. As falsidades abundam. Era preciso confirmar –uma vez, duas, três– aquilo que lemos. Os livros são mais fiáveis do que a internet, disse ele. E, mesmo na internet, há sites "oficiais" (de organizações, mídia etc.) que não podem ser confundidos com blogs. A maioria, pelo menos.

O filho escutou e não queria acreditar. Nem a Wikipédia era de confiança?

Falamos de um pré-adolescente, repito. Nos pré-universitários, a questão é outra: leio no "Washington Post" que um dos esforços do Newseum de Washington –instituto que defende a liberdade de expressão– tem sido ensinar que nem tudo são "fake news".

Os pré-universitários cresceram com essa perversa expressão. Moral da história? Se tudo é "fake", não há nada em que acreditar. Ou, pior, é possível acreditar em qualquer coisa, consoante o gosto e o momento: a verdade não passa de uma quimera.

O filho do meu amigo tinha excesso de credulidade. Os americanos pré-universitários têm excesso de incredulidade. Mas os extremos, como sempre, tocam-se: para pré-adolescentes e pré-universitários, só existe a pós-verdade.

Confesso que o paradoxo não me espanta. Digo mais: a história do conhecimento humano sempre se fez contra o dogma, por um lado, e a falsidade, por outro.

O melhor dos exemplos está em Sócrates, o filósofo da Atenas gloriosa do século 5 a.C.. Acabei de ler uma breve biografia do bicho escrita por Paul Johnson. Sempre gostei de ler Johnson: não tanto pela originalidade do que diz mas, antes, pela originalidade de como diz. Recomendo o seu "Modern Times", por exemplo, ou "Art: A New History", que tenho como companhia permanente.

O seu "Socrates" (Viking, 208 págs.) não tem o fôlego das grandes obras. E, sobre a questão arcana de separar o verdadeiro Sócrates da versão que nos chegou via Platão, os estudos de Gregory Vlastos são inultrapassáveis –e Johnson sabe disso.

Mas o historiador ilumina, com a elegância de estilo habitual, que os inimigos de Sócrates são os mesmos que hoje enfrentamos.

De um lado, a opinião estabelecida, o fato inquestionado, o rumor doutoral –sombras de conhecimento que encontramos disseminadas pela internet e que conferem às multidões uma intolerância que não teria espantado o filósofo.

Do outro, o relativismo cognitivo, a descrença na verdade, a conduta amoral de quem pensa que tudo é "construção" e "manipulação" –em suma, a cartilha dos sofistas que enxameavam Atenas, ensinando a retórica e a arte da persuasão a jovens ricos e politicamente ambiciosos.

Perante esses dois inimigos, Sócrates era, nas palavras de Johnson, um "conservador radical" –e não um "radical conservador", como Platão. Segundo Johnson, uma das formas de distinguir ambos reside precisamente aqui: Platão diz-nos sempre o que pensar; Sócrates indica-nos como pensar.

E, nesse processo dialético, a certeza dogmática ou o niilismo epistemológico são demolidos com ceticismo e ironia. Sócrates acreditava no conhecimento, sim, mas não na arrogância dos presumidos conhecedores.

E hoje? Onde mora a verdade para pré-adolescentes e pré-universitários?

A pergunta deve ser respondida pelas universidades (aquelas que não são centros de doutrinação), pela mídia (aquela que não trocou a independência pela cartilha ideológica) e por qualquer pensador livre (desde que seja realmente livre). Mas o exemplo de Sócrates é uma boa herança.

Difícil? Fato. E Sócrates, convém lembrar, não teve um final feliz: foi condenado à morte por corromper a juventude de Atenas e desrespeitar os deuses da cidade –duas acusações que são a medida da sua grandeza perante o fanatismo dos seus carrascos.

Mas, se ainda hoje lemos o filósofo, é porque a defesa das causas perdidas, no fim de contas, é a defesa das causas vencedoras.


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