Folha de S. Paulo


'13 Reasons Why' é pobre como drama porque é literal e pedagógico

Beth Dubber/Divulgação
A estudante Hannah Baker, interpretada por Katherine Langford, em '13 Reasons Why'
A estudante Hannah Baker, interpretada por Katherine Langford, em '13 Reasons Why'

Era inevitável: todo mundo falava de "13 Reasons Why" a série do momento. Respeitei o clamor, sentei-me no sofá e assisti aos 13 episódios com diligência. Opinião pessoal?

Um pouco de paciência. Primeiro, e para quem vive em Marte, uma breve apresentação do produto. "13 Reasons Why", baseado no livro de Jay Asher, é o relato da vida de Hannah Baker. Da vida e da morte, melhor dizendo: Hannah, 17, estudante do ensino médio, comete suicídio. Ninguém sabe por quê.

Mas Hannah sabe e deixa para a posteridade gravações áudio nas quais vai identificando os responsáveis pelo seu trágico fim. Os responsáveis são, sem surpresas, os coleguinhas da escola que foram cometendo bullying (e um crime particularmente grave) contra Hannah. Cansada da vida, da impunidade dos seus carrascos e da inoperância dos "adultos", Hannah despede-se do mundo.

Segundo a crítica, a série colocou o bullying e o suicídio adolescente na agenda. "Despertou consciências", como diz a propaganda, e eu admito que sim. Nesse sentido, a série não é propriamente uma obra de ficção, muito menos uma obra de arte de ficção. É uma espécie de documentário fictício, ou talvez uma novela de adolescentes, muito semelhante a outras novelas que valem pela sua mensagem "social".

Lembro-me de assistir a algumas, quando passei pela calvário da menoridade: novelas sobre o sexo desprotegido, a gravidez inesperada, as doenças sexualmente transmissíveis e, claro, a importância salvífica da abstinência –ou, no limite, da camisinha.

"13 Reasons Why" opera na mesma lógica ao mostrar as agressões (ou, como hoje se diz, as "microagressões") que são cometidas todos os dias nas escolas dos Estados Unidos (ou do Brasil, ou de Portugal, ou...): insultos, calúnias, maldades sobre estudantes mais vulneráveis, que provocam danos físicos ou psicológicos consideráveis.

Quem vê o primeiro episódio adivinha todos os episódios seguintes: uma escalada de insensibilidades contra Hannah Baker –e nós, que assistimos às investidas, vamos interiorizando a mensagem dos criadores. Isso não se faz. Isso é errado. Isso poderia acontecer com a minha filha. É preciso estar atento. As escolas devem estar atentas. Os pais também. E etc. etc.

"13 Reasons Why" é pobre como drama porque é literal e "pedagógico". Mas a questão fundamental é saber se, mesmo como "pedagogia", a badalada série merece tanto aplauso.

Tenho dúvidas e, mais, desconfio que "13 Reasons..." é um belo retrato da nossa decadência moral e do "heroísmo vitimário" que tomou conta do homem ocidental.

Em pequeno e luminoso livro já publicado no Brasil, intitulado "Crítica da Vítima" (editora Âyiné, 177 págs., R$ 39,90), o filósofo Daniele Giglioli procura entender como as vítimas se tornaram o exemplo moral por excelência, dotadas de uma virtude e de uma "santidade" (no sentido prosaico da palavra) que antigamente só concedíamos a outra espécie de agentes morais.

Porque esse é o problema central da "ideologia vitimária": o sujeito renuncia ao seu estatuto como agente moral e algumas das virtudes que sempre fizeram parte da nossa gramática laudatória (coragem, prudência, temperança, justiça) são substituídas pelo endeusamento da impotência, da fraqueza, da passividade –e da irresponsabilidade.

Ponto importante: Giglioli não nega a existência de vítimas; o que ele condena é a cultura parasitária que se alimenta da "vitimização" para mutilar o que de mais importante existe no ser humano: a capacidade de pensar criticamente a sua conduta e a conduta de terceiros.

"13 Reasons Why" é apenas o reflexo dessa moda. Hannah Baker é, sem dúvidas, vítima de um ambiente hostil, embora o adjectivo correto talvez fosse "adolescente": quem já passou por esses terrenos infectos sabe que a estupidez, a inconsciência e até a crueldade fazem parte do pacote.

Porém, Hannah Baker assume-se desde o início como uma sofredora impenitente e a principal consequência desse estatuto é que ela será incapaz de reagir à intrínseca iniquidade do mundo. Ela não racionaliza, não denuncia, não confronta, não se afasta. Quando assistia aos episódios, a minha pergunta não lidava com a maldade dos seus colegas; lidava com o estado "sonâmbulo" da personagem central.

Os fãs da série transformaram Hannah Baker em heroína de coisa nenhuma. Seria mais proveitoso que eles olhassem para Hannah Baker como o exemplo trágico do que acontece quando há uma rendição interior.

Porque o mundo nem sempre é justo. E a estupidez humana está democraticamente distribuída. A única forma de viver neste mundo é não esperar que os outros se curvem à perfeição –mas ter em nós os recursos morais necessários para identificar, evitar e em, certos casos, punir a conduta dos brutos.

Essa deveria ter sido a mensagem de "13 Reasons Why". Mas acredito que o sucesso da série não seria o mesmo.

—

P.S. - O colunista sairá em férias e regressa à coluna on-line em 8 de setembro.


Endereço da página:

Links no texto: