Folha de S. Paulo


Contar ou não contar ao amigo enganado, eis a questão

Angelo Abu/Editoria de Arte
João Pereira Coutinho de 1º.ago.2017

Parece coisa de filme: estar na hora errada, no lugar errado. Ou, para os otimistas, estar na hora certa, no lugar certo. Não sou um otimista.

O dia era promissor: dormi até tarde, fui nadar, almocei com os jornais. E já tinha bilhetes para assistir ao concerto de Woody Allen e sua banda de jazz no Coliseu de Lisboa.

Quando abandonava o restaurante, a namorada de um amigo era beijada por um estranho com intensidade cinematográfica no canto da sala. Instintivamente, pensei que fosse abuso: cavalheiro como sou, avancei para salvar a donzela.

A donzela não precisava ser salva. Eu, sim: quando me viu, desviou o olhar como se não me conhecesse de lado algum e continuou a conversa. Ela sabia que eu sabia que ela sabia, e blá blá blá.

Caminhando pela calçada, repeti a célebre questão do príncipe da Dinamarca: contar ou não contar ao amigo enganado, eis a questão.

Procurei ajuda. Partilhei a revelação com a minha mulher, que logo aconselhou: entre amigos verdadeiros, há conversas verdadeiras. Hipocondríaco que sou, procurei logo uma segunda opinião.

"Não sejas louco", aconselhou-me um amigo em comum. A vida dos outros não é da nossa conta. E a mentira tem pavio curto. "Ele que abra os olhos", eis a sentença implacável.

Como o burro de Buridan, fiquei no meio da ponte. Seria fácil esquecer o assunto se o casal vivesse na China. Azar. Vivemos na mesma cidade e havia um jantar combinado para o sábado seguinte.

Fomos. Ela abriu a porta, cumprimentou-nos e, no meu caso, até perguntou: "Está mais magro ou é impressão minha?".

Eu, com queda para o drama, respondi: "Tenho dormido mal".

Claro que tenho dormido mal. "Não pratica esporte com regularidade", sentenciou o meu amigo, que me apertou os ossos da mão com uma vitalidade obscena. Primeiro pensamento: ela não contou. Segundo pensamento: e agora?.

Vieram as primeiras bebidas. Falei pouco. Eles falaram bastante: as férias em agosto, problemas com os pais dele, um filme qualquer de um diretor qualquer. Eu olhava para ele (com compaixão) e depois para ela (com estupefacção).

Quando nos preparávamos para o jantar, ela fez-me um sinal para falarmos a sós na cozinha. Sorri. Ainda há esperança no mundo?

"Não digas nada", começou a donzela, "mas estive a pensar no presente surpresa para o aniversário dele." O mundo não merece a minha esperança.

O jantar foi tenso. Para mim, não para eles. Estranharam o meu silêncio, pontuado por monossílabos hostis. Ele, para quebrar a modorra, perguntou pelas minhas leituras. "Que tem lido, doutorzinho?"

Com voz áspera, o doutorzinho respondeu: "Os clássicos". E acrescentou, no mesmo tom: "'Anna Kariênina', 'Madame Bovary', 'O Amante de Lady Chatterley'...". Depois, olhei para ela: "Vocês sabem do que estou a falar".

Sabiam e concordaram. "Os clássicos não envelhecem", disse ele, em lamentável clichê. "É como a infidelidade", disse eu. "Exatamente", disse ela, rindo.

Depois do jantar, houve um momento em que fiquei a sós com ele. A oportunidade surgiu com um comentário ("passa-se alguma coisa contigo?"), mas logo desapareceu com a minha covardia ("cansaço, só cansaço."). A conversa ficou por ali.

Regressei para casa com uma fúria sufocada. "Esquece o assunto", aconselhou-me a patroa. Esqueci.

Mentira, claro. Nessa mesma noite, escrevi um e-mail com as entranhas: que a amizade era importante para mim; que a honestidade também; que a minha consciência era uma "puta exigente" e outros melodramas de folhetim. Contei-lhe a verdade.

Recebi silêncio como resposta. Respeitei. Passou quase um mês. Voltei a dormir como um anjo.

Ontem, o dia era promissor: acordei tarde, fui nadar, mudei de restaurante. Quando me sentei à mesa, o sangue parou e congelou: o maldito casal pagava a conta à minha frente.

Levantei-me, aproximei-me e desabafei: "Ainda bem que acabou a farsa, Patrícia".

Ela olhou para mim –primeiro com espanto, depois com um sorriso caridoso– e respondeu com uma pergunta: "O senhor não estaria me confundindo com a minha irmã?".


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