Folha de S. Paulo


Só o homem entediado terá chance de salvação num futuro de smartphones

Nicolas Asfouri /AFP
Jovens usam seus smartphones na cidade de Shenzhen, na China
Jovens usam seus smartphones na cidade de Shenzhen, na China

Assisto a conferências e a moda não engana: metade da sala (no mínimo) está com a cabeça enfiada em smartphones. Como seriam as conferências antigamente? O que fazia a audiência enquanto alguém falava no palanque?

Provavelmente, escutava. Ou dormia. Ou dormia e escutava, em intervalos saudáveis.

Hoje, ninguém dorme. Duvido que alguém escute. O smartphone é o inimigo do tédio, ou da reflexão, proporcionando uma festa permanente.

Este seria o momento ideal para eu vestir a toga do moralista vulgar, lançando raios homéricos sobre a nefasta tecnologia. A data, aliás, seria a mais apropriada: o iPhone nasceu dez anos atrás e o dilúvio começou.

Infelizmente, não posso pregar. Eu também faço parte do clube que prefere o smartphone ao velho e bom cochilo.

Especialistas diversos gostam de explicar a compulsão. É como uma droga, dizem eles: quando espreitamos as mensagens, o e-mail, as redes sociais, procuramos uma espécie de recompensa neurobiológica muito semelhante a um viciado.

O problema se agrava quando somos privados da nossa dose –e eu sei, o leitor sabe, todos sabemos dessa miserável privação.

Tempos atrás, esqueci-me do celular em casa e parti em viagem. Quando dei conta do estrago, uma inquietude foi crescendo com o passar das horas.

Ainda pensei em pedir ao companheiro do lado para me emprestar o smartphone dele. Só para eu ler as minhas mensagens. Ou até, sei lá, as mensagens dele. Qualquer coisa servia. Eu era como alguns alcoólatras que, na ausência de bebidas legais, começam a despejar perfume pela goela.

Controlei-me. Telefonei para casa –de um telefone fixo, entenda– e pedi, com um último fôlego, que me lessem as novidades do bicho. Nenhuma delas era urgente, sequer interessante. Mas o corpo sossegou e mergulhou naquele estranho torpor que Thomas de Quincey relatou nas suas "Confissões de um Comedor de Ópio". Como se chegou até aqui?

Verdade: o tédio sempre foi o grande terror dos homens modernos. Ter no bolso um aparelho que garante distração permanente é a melhor forma de afastar o fantasma.

Acontece que o tédio tem as suas vantagens. O filósofo Mark Kingwell tem escrito sobre a matéria e em artigo primoroso para a "Literary Review of Canada", sintomaticamente intitulado "In Praise of Boredom", o autor socorre-se de pensadores canônicos –como Schopenhauer ou Heidegger– para relembrar a importância do dito-cujo.

Só o tédio, escreve ele, é capaz de sinalizar a existência de um problema entre nós e o mundo. O tédio é a "suspensão da suspensão" em que vivemos –uma forma terapêutica, e até brutal, de olharmos para a realidade sem fugas. E de agirmos em conformidade.

Quando abolimos o tédio, e o "dom da escuta" que só ele oferece, desaparece uma parte da nossa humanidade –aquela parte que reflete, imagina ou cria. E que problematiza, critica, propõe.

No futuro, não será apenas a audiência que estará mergulhada nos ecrãs dos smartphones. Também suspeito que os próprios conferencistas, privados de pensar e sem nada para dizer, terão o mesmo comportamento.

Imagino um encontro de silêncios, onde todos os presentes estarão ausentes –e só o homem entediado terá chance de salvação.


Endereço da página: