Folha de S. Paulo


A Europa é vítima do terrorismo, mas nunca acredita que ele existe

Contemplava o fogo em Grenfell Tower, o prédio residencial de Londres que gerou 17 mortos e 70 feridos (por enquanto), e murmurei para um colega: "Espero que não seja terrorismo".

Ele ficou horrorizado com o meu comentário e lançou-me um olhar fulminante, digno de um jihadista. A acusação era óbvia: eu sou um paranoico; eu vivo com a obsessão terrorista na cabeça.

Concordo com a primeira parte. Tenho dúvidas sobre a segunda. Mas entendo a reação do parceiro –humana, demasiado humana: ela reproduz, na perfeição, o estado existencial da Europa.

Vamos aos números? Na Inglaterra, nos últimos três meses, houve três atentados terroristas. Na Europa, só em 2017, já houve mais de 20 ataques (tradução: mais de cem mortos, mais de 300 feridos).

Mas os europeus, cumprindo as etapas clássicas do luto, ainda estão na primeira: a negação. Isso é visível sempre que acontece mais um "incidente" (para usar a palavra preferida da mídia ocidental). A negação começa com a mera hipótese de haver ali dedo selvagem. Foi um atropelamento casual ou um tiroteio passional.

Quando uma dessas hipóteses se confirma, há festejos imediatos, o que me parece um terrível desrespeito pelas vítimas: morrer por atropelamento negligente não deixa de ser uma tragédia.

Quando nenhuma das hipóteses se confirma e a palavra "terrorismo" começa a surgir no horizonte, entra em cena a negação nº 2: os culpados podem ser cristãos, judeus, budistas, krishnas ou druidas. Que não sejam mais um Muhamad.

Fatal: é mais um Muhamad. Chega então a negação nº 3: que fizemos nós para merecer o castigo? Como defende Paulo Tunhas, um filósofo português que tem pensado sobre essas matérias, essa negação é uma forma de racismo –ou, pelo menos, de infantilização do outro. O terrorista nunca é culpado porque ele, em rigor, não sabe o que faz. Nós é que deveríamos saber o que andamos a fazer desde as cruzadas.

Ponto de ordem: não há conclusões sobre o inferno de Grenfell Tower. Aceito de coração aberto que houve ali incúria, estupidez ou acaso. Os moradores já tinham alertado para as falhas de segurança (e de higiene) do prédio.

Mas registro com interesse intelectual a forma decidida, dogmática, censória, como ninguém aceita a hipótese terrorista. A mesma Europa que tem doses semanais de horror considera que o horror nunca existe: é uma anormalidade que não deve ser mencionada. Como os povos primitivos, acreditamos que a melhor forma de não sermos punidos pelos deuses é nunca pronunciar os seus nomes.

Quando os deuses, apesar de tudo, persistem em castigar-nos, é como se fosse a primeira vez. Os terroristas têm as suas 72 virgens (o pesadelo de qualquer homem sexualmente maduro, diga-se). Mas os europeus conseguem ser virgens repetidamente.

E o fogo? Com a devida vênia ao leitor, vou ser um pouco paranoico. Tempos atrás, quando o Daesh começou a ser esmagado no Iraque e na Síria, os seus canais de propaganda começaram a instruir os fiéis. Se o objetivo é matar, e se existe uma vontade de matar (e, já agora, de morrer), não vale a pena viajar para as areias das arábias. Qualquer "soldado" pode cumprir a "missão" nas cidades europeias. Basta ter uma faca. Ou, melhor ainda, um caminhão (ou até um carro) com velocidade apreciável.

Não é preciso explicar o que aconteceu a seguir. Mas é preciso acrescentar que os conselhos do Daesh não pararam em facas ou carros. Na sua revista oficial, "Rumiyah" (que significa "Roma", porque "Roma" representa, simultaneamente, a decadência da Cristandade e o supremo prêmio a conquistar), há novas dicas para quem procura carreira no martírio.

A mente humana não cessa de me espantar. Quem diria que classificados de emprego podem ser uma forma de atrair candidatos para o matadouro?

E quem diria que atear fogo a edifícios –uma técnica bastante usada nos assentamentos da Cisjordânia– também se encontra entre os novos conselhos "técnicos"? A maldade é como a vida: evolui.

Repito, mil vezes repito: aceito e até suspeito que Grenfell Tower é um caso de negligência ou simples azar. Mas era bom que a Europa aceitasse, sem respeitar, que o terrorismo já não é novidade. E que os próprios terroristas, justiça seja feita, nunca esconderam os seus propósitos. Pelo contrário: eles são um caso de literalismo até nas intenções.

Para usar o conhecido adágio, a Europa pode não estar interessada no assunto. Mas o assunto vai continuar interessado na Europa.


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