Folha de S. Paulo


Antes de ser um 'serial killer', o utopista é um 'serial flirter'

O meu colega Luiz Felipe Pondé formulou a questão na sua coluna: os intelectuais não aprendem com a "experiência histórica"? Por outras palavras: olhamos para as ruínas utópicas do século 20. E, com honestidade, pasmamos com a capacidade humana de imaginar paraísos na Terra. Depois do dilúvio, como acreditar nas falsas promessas dos falsos profetas?

Durante anos, muitos anos, batalhei com a questão. E parti sempre do pressuposto de que a mentalidade utópica se baseia no erro. Os filósofos "liberais", como Karl Popper ou Isaiah Berlin, têm páginas definitivas sobre esse erro.

Isaiah Berlin, aliás, é talvez um dos mais poderosos pensadores anti-utópicos ao mostrar, com clareza devastadora, que a ideia de um mundo onde os valores mais importantes da vida se encontram na sua expressão máxima é uma impossibilidade conceptual.

A máxima liberdade não joga com a máxima igualdade. Tradução: as utopias falham, não apenas porque os homens são limitados/ignorantes/maldosos —mas porque existe uma bomba-relógio em qualquer projecto de perfeição.

Pois bem: é inútil. Para regressar à questão inicial, os intelectuais não aprendem. O que permite suspeitar que eles não aprendem porque não querem aprender.

Essa, pelo menos, é a hipótese que Roger Scruton defende em livro que não me canso de recomendar ("As Vantagens do Pessimismo", É Realizações).

Depois de definir o que entende por utopia - um mundo ideal onde os problemas comuns da condição humana são finalmente resolvidos —Scruton acrescenta o pormenor fundamental: qualquer pensador utópico sério sabe que a utopia é inalcançável.

Mais ainda: é precisamente pelo facto de ela ser inalcançável —e, consequentemente, irrefutável— que a busca da perfeição prossegue sempre e sempre e sempre.

Roger Scruton baseia-se na obra do grande (e esquecido) filósofo Aurel Kolnai (1900-1973) para concluir: é essa mistura de "impossibilidade" e "irrefutabilidade" que permite a sobrevivência da mentalidade utópica.

E quando esperamos que os intelectuais possam "entender" o equívoco, eles respondem naturalmente que não há nada para "entender": se a utopia não foi alcançada (ainda...) ela não pode ser criticada (ainda...).

Com a devida vénia a Scruton, e um pedido de desculpas aos homens românticos, o utopista, antes de ser um "serial killer", é um "serial flirter". É a excitação da caçada, e não o resultado final, que verdadeiramente lhe interessa.

Como afirma Scruton, a mentalidade utópica é bastante arguta na crítica às misérias presentes. Mas quando pedimos a um utopista para ele explicar detalhadamente os contornos da sua utopia futura, tudo que obtemos são promessas vagas de que será possível caçar de manhã, pescar à tarde, discutir literatura ao serão, para repetir os delírios de Marx e Engels em "A Ideologia Germânica". A utopia não é um destino. É uma aventura existencial —e, em política, mortal.

As Vantagens do Pessimismo
Roger Scruton
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Verdade que muitos utopistas abandonaram a ilusão e reconciliaram-se com a realidade. Mas, sem ofensa, esses são os amadores. E escrevo "amador" no sentido próprio da palavra: como aquele que ama desinteressadamente algo, ou alguém, por acreditar na bondade da sua missão.

Os profissionais são outra história. Fugir deles, ou impedir que governem, é o único diálogo que recomendo.


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