Folha de S. Paulo


O desastre de não imaginar o desastre

Justin Sullivan/AFP
SAN JOSE, CA - APRIL 18: Facebook CEO Mark Zuckerberg delivers the keynote address at Facebook's F8 Developer Conference on April 18, 2017 at McEnery Convention Center in San Jose, California. The conference will explore Facebook's new technology initiatives and products. Justin Sullivan/Getty Images/AFP == FOR NEWSPAPERS, INTERNET, TELCOS & TELEVISION USE ONLY ==
Mark Zuckerberg, CEO do Facebook

O Facebook é o faroeste. Não falo das mensagens ou dos comentários que exibem uma violência e uma selvajaria inauditas. Isso, digamos, é quase brincadeira de crianças. Falo do resto: espancamentos, violações, suicídios, homicídios —tudo transmitido ao vivo para milhares de seres humanos.

O último caso foi protagonizado por Steve Stephens. Escrevo "protagonizado" porque existe uma dimensão quase cinematográfica no horror. Steve, como um vilão de filme, aproximou-se de Robert Godwin, 74, e abateu-o depois de uns segundos de suspense. Depois, para cumprir o roteiro, filmou-se em meditações profundas sobre a vida.

Sabemos agora que, perseguido pela polícia, o criminoso suicidou-se. É incompreensível que não tenha filmado o último ato da sua narrativa. Acredito que seria um sucesso de bilheteria.

Perante esta sombria realidade, a pergunta é básica: como foi que Mark Zuckerberg e sua tribo não previram, sequer imaginaram, que o Facebook seria "sequestrado" por psicopatas vários para promoverem, como estrelas de Hollywood, os seus atos macabros?

A pergunta é formulada por Steve Coll na "New Yorker" mas o autor não consegue encontrar uma resposta. Todos os dias, o Facebook tem 1,2 bilhões de utilizadores. Mark Zuckerberg pode prometer maior vigilância. Mas haverá sempre alguém que terá no Facebook Live o seu palco, ou o seu açougue.

O problema, em suma, está na existência do próprio Facebook Live, uma evidência que nunca passou pela cabeça do adolescente Zuckerberg.

E não passou pela cabeça por razões que um filósofo inglês explica muito bem. O nome é Roger Scruton e o livro —pessoalmente, o melhor livro dele— intitula-se "As vantagens do pessimismo e o perigo da falsa esperança" (É Realizações, 208 págs.).

O objetivo de Scruton é analisar a mente otimista. Cautela: Scruton nada tem contra o otimismo. Sem um mínimo de esperança —na vida, nos outros, em nós— a existência seria um vale de lágrimas insuportável.

O perigo, para Scruton, está no "otimismo inescrupuloso" que se baseia em várias falácias intelectuais. E a primeira delas, que importa relembrar agora, é designada por "the best case fallacy", algo que podemos traduzir livremente por "falácia do melhor resultado".

Para o "otimista inescrupuloso", as suas escolhas em condições de incerteza nunca são escolhas de resultado incerto. Pelo contrário: para o "otimista inescrupuloso", só existe um resultado possível - o melhor, o ideal, o perfeito.

O "otimista inescrupuloso" é muito parecido com alguém viciado no jogo. E existe uma ideia "romântica", escreve Scruton, de que o jogador é alguém que assume o risco e, apesar disso, aposta na mesma.

Antes fosse. O viciado não acomoda o risco no seu cálculo; ele entra no jogo com a certeza de que vai ganhar. Perder não é um resultado "natural"; é um surpresa cósmica que nunca lhe ocorreu "a priori".

Foi esse tipo de mentalidade que presidiu aos maiores horrores do século 20. É indiferente falarmos de Lênin, Stálin, Hitler ou Mao. Todos eles lançaram-se no abismo da utopia porque, logicamente, nunca imaginaram que o abismo seria mesmo um abismo. Nas suas cabeças estreitas e criminosas, o resultado final seria perfeito. Melhor ainda: só poderia ser perfeito.

As Vantagens do Pessimismo
Roger Scruton
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Dizer que não foi perfeito é um arrepiante eufemismo. Mas enganam-se os que pensam que o "otimismo inescrupuloso" e a falácia do melhor resultado ficaram sepultadas no século 20. Hoje, em diferentes latitudes, "otimistas inescrupulosos" continuam a resistir a qualquer "imaginação do desastre", para usar a famosa expressão do escritor Henry James.

Mark Zuckerberg é apenas um deles: basta escutá-lo ou lê-lo para vermos como o mundo de Zuckerberg é composto por fadas e duendes, em danças alegres, sob as cores do arco-íris. Nesse mundo, não há espaço para a natureza humana tal como ela é: generosa e criativa, sim, mas também narcísica, cruel, patológica. Para usarmos a palavra proibida da pós-modernidade, no mundo de Zuckerberg não há espaço para o Mal.

Mal? Na mesma semana em que o homicida de Cleveland deslumbrava o auditório, Zuckerberg anunciava que o Facebook terá direito a "realidade aumentada". Em breve, qualquer um poderá adicionar efeitos especiais às suas imagens. Como nos filmes de Hollywood.

De fato, é só mesmo o que faltava: tornar o sangue real das vítimas mais vermelho e os gritos mais musicais.


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