Folha de S. Paulo


Censura regressa com as vestes simpáticas do progresso

A liberdade de expressão tem limites? Pois tem. Os limites que estão na lei e que os tribunais aplicam. Um pouco de história: teria 19 ou 20 anos quando fui processado por abuso de liberdade de imprensa em Portugal. Não interessa se o processo foi razoável ou excessivo. Não interessa se a minha condenação foi justa ou ridícula.

Interessa apenas que os mecanismos habituais do Estado de Direito funcionaram: eu tive total liberdade para escrever o meu artigo; a pessoa visada teve toda a liberdade para mover a acção judicial; eu tive toda a liberdade para me defender em tribunal; e o tribunal teve toda a liberdade para me condenar.

A verdadeira ameaça à liberdade de expressão só acontece quando se invertem essas regras. Quando se defende a censura em nome da civilidade e do progresso. A Alemanha, por exemplo, pretende seguir esse sinuoso caminho.

Segundo leio, existe um anteprojeto de lei que pretende multar severamente as redes sociais pela publicação de notícias falsas ou mensagens de incitamento ao ódio. Se o Facebook não apagar esses textos em 24 horas, a justiça germânica entra em acção.

Não vale a pena repetir o óbvio: vigiar e censurar mais de 1 bilhão de mensagens diárias é uma ambição inútil e paranóica. Mas o meu problema com a matéria não está na tarefa impossível dos censores. Está nos próprios censores. E, já agora, na indefinição dos crimes que caberá às redes sociais, e não aos magistrados, avaliar.

Entendo que posts onde se incita à morte de minorias ou opositores políticos constitui um crime. Mas o que dizer de textos onde se satirizam minorias? Onde se expressam preconceitos ou até repulsas? Onde se critica duramente, e até injustamente, opositores políticos?

Essas perguntas não devem ser respondidas por administradores de redes sociais. Muito menos pelas massas enlouquecidas que gostam de apagar tudo aquilo com que discordam. Em nome da "tolerância", claro.

Seja em crimes manifestos, seja nas zonas cinzentas onde a liberdade de expressão e o abuso de expressão se encontram, é perante a justiça que os eventuais criminosos devem responder.

Os esforços de um Estado de Direito não deveriam ser orientados para transformar as redes sociais em vespeiros de censura aleatória - uma oportunidade perigosa para políticos autoritários calarem os seus críticos pelo alargamento da definição de "crimes de ódio". (Será preciso lembrar que, para Putin, a sua "meme" gay é uma manifestação de "extremismo"?)

Seria mais útil afinar os mecanismos de identificação de quem publica, sobretudo sob anonimato. Para que as vítimas potenciais possam levar um rosto e um nome ao único lugar que interessa: o tribunal.


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