Folha de S. Paulo


'La La Land' mostra que não se faz grande arte com a alma adormecida

A nossa ambição é ser "cool". Eis a virtude da pós-modernidade, se "virtude" ainda é palavra tolerada. A ideia é lidar com qualquer aspecto importante da nossa humanidade -o amor, o medo, a covardia, a solidão- sem nunca permitir que o mundo nos atinja, nos transforme, nos despedace.

Dias atrás, encontrei um texto de Theo Hobson na "Spectator" sobre o assunto. Lendo os escritores Martin Amis ou Geoff Dyer, Hobson dizia o óbvio: dois excelentes estilistas, que são apenas estilo e mais nada. Quando se aproximam de qualquer objeto, lugar ou memória marcantes, há sempre um distanciamento irônico e vazio, como se as suas almas de esteta jamais mergulhassem nos abismos da condição humana.

Concordo. Aliás, é uma pena que Theo Hobson não tenha acrescentado ao clube mais um exemplo: o filme "La La Land", indicado para 14 Oscar e considerado uma obra-prima do cinema contemporâneo.

Lamento discordar. Mas, antes de discordar, uma confissão: ao contrário do meu ilustre colega Marcelo Coelho, eu gosto de musicais. "Gosto"? Peço desculpa pela palavra. Amo.

Inevitável: sou mentiroso desde a mais tenra idade e os musicais são para gente mentirosa como eu. A realidade sempre me pareceu um cenário estreito e árido. E, às vezes, quando caminho pela rua, quando vivo grandes alegrias (ou grandes, imensas tristezas), penso como seria bom poder cantá-las e ter uma orquestra para me amparar. Quem canta seus males espanta, dizem os portugueses. Ninguém deveria rir ou chorar sem o ombro amigo de uma canção.

"La La Land" não é esse ombro amigo. Sim, Emma Stone tem um par de olhos que vale dez minutos de contemplação. E a música de Justin Hurwitz cumpre os mínimos olímpicos.

Mas a história é esquemática, previsível e participa daquela moda recente de desculpar a sua falta de originalidade com a palavra "homenagem". "La La Land" é uma "homenagem" aos musicais, dizem, e em particular a "Os Guarda-Chuvas do Amor" ("Les Parapluies de Cherbourg"), de Jacques Demy, um filme que está no meu panteão.

Peço desculpa: "La La Land" não é uma homenagem; é um exercício mimético de Jacques Demy -da paleta cromática ao tema central: a impossibilidade de reescrevermos o passado e de termos que viver com as nossas escolhas e, sobretudo, com as consequências das escolhas dos outros.

O único momento em que Damien Chazelle, diretor de "La La Land", se permite a ser original é no fim. Tranquilo, leitor, não revelo nada. Apenas digo que Chazelle acerta ao captar o espírito do nosso tempo: tudo é "cool", nada é uma tragédia. Shakespeare? Deixemos isso para homens que usam collants.

O fim de "La La Land" não é triste porque é "smart". E, sendo "smart", esvazia o filme de qualquer dimensão transcendente (e uso a palavra no sentido mais prosaico). Daqui a um ano, ou dois, ou três, nem os olhos de Emma Stone ficarão na memória.

Recuo meio século. Jacques Demy filmou "Os Guarda-Chuvas do Amor" em 1964. Verdade que Michel Legrand foi o compositor (a trilha sonora ainda hoje estremece qualquer ser com atividade cerebral) e convidou uma tal de Catherine Deneuve, então com 21 anos, para ser Geneviève (a propósito: "Geneviève" é o nome de uma personagem que Emma Stone interpreta como atriz em "La La Land").

Geneviève ama Guy (Nino Castelnuovo, no filme). Mas a guerra na Argélia afasta-os durante dois longos anos. Geneviève acredita que vai morrer de saudades. A mãe, com o sentido prático das velhas raposas, diz-lhe: "Só se morre de amor no cinema" (uma frase que "La La Land" leva às últimas consequências).

Tem razão. O tempo é como a chuva que cai em Cherbourg: desgasta tudo, lava tudo. Jacques Demy já era tão moderno quanto Damien Chazelle. Em 1964, também ninguém morria de amor no cinema dele.
Mas morríamos nós, espectadores, pelo silêncio desolador daquele desencontro. Talvez por sabermos que há coisas bem piores do que a morte física dos amantes.

A nossa ambição é sermos "cool"? Nada a opor. Direi mais: vive-se melhor nesse mundo de ironia perpétua, se "viver" ainda é palavra tolerada no planeta dos pós-modernos.

Mas se o leitor pensa que é possível fazer grande arte com a alma adormecida, anestesiada, amputada, um conselho: compre uma passagem para Cherbourg e não se esqueça de levar um guarda-chuva.


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