O escritor Henry Miller costumava dizer que as pessoas que se preocupam com os problemas da humanidade, de duas, uma: ou não têm problemas pessoais ou se recusam a enfrentá-los.
Essa frase, que li num dos seus romances "proibidos" ("Sexus", talvez?), transformou-se em credo pessoal. Quando escuto alguém a falar apaixonadamente de temas abstratos —famintos de África, aquecimento global, paz no mundo etc. —a minha pergunta instintiva é saber quais os problemas pessoais que a pessoa em causa evita enfrentar.
Marchar contra o aquecimento global é a forma perfeita de esconder ou ignorar as misérias da alma humana. Quem gosta de melhorar o mundo é porque desistiu de se melhorar.
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Ativista protesta por ações mais rápidas contra a mudança climática, em Cancún (México), em 2010 |
Mas existe um segundo sentido na frase de Miller: os problemas da humanidade são atrativos porque estão distantes; e não exigem nenhum esforço especial.
Os problemas pessoais, na sua banalidade, são difíceis porque estão próximos. E os grandes dilemas que enfrentamos não lidam com ursos polares ou conflitos no Oriente Médio. Lidam com a guerrilha de todos os dias, em que os nossos princípios colidem com coisas mais básicas. Por exemplo, manter um emprego e ter dinheiro para pagar as contas da família.
Um amigo meu, professor do ensino secundário, contou-me a história de um colega que não esqueci.
Certo dia, o docente em causa foi chamado ao gabinete do diretor. Motivo: as classificações dos exames. Segundo parece, as classificações que ele atribuía aos alunos estavam "abaixo da média".
Ele, surpreendido com a filosofia do colégio, limitou-se a afirmar que nunca corrigia exames de acordo com as notas dos outros professores. Limitava-se a aplicar a mais velha distinção do mundo entre verdade e erro. As notas expressavam esse julgamento elementar.
O diretor compreendeu a seriedade do professor. Mas depois perguntou - uma forma suave de ridicularizar - se o ensino moderno pode ser resumido a uma dicotomia tão estreita entre "saber" e "não saber". Existem outros valores - extra-epistemológicos, digamos assim - que devem ser tidos em consideração.
E, além disso, os alunos pagam mensalmente uma quantia generosa para estudarem na instituição. Não será legítimo esperar que eles tenham direito ao sucesso?
O pobre homem ficou mudo. E o diretor, em tom amigável, pediu-lhe para "repensar os critérios" até porque "os pais estão preocupados". Não com a ignorância ou a preguiça dos filhos, entenda-se; mas com as "expectativas frustradas" de quem apostara naquele colégio em particular.
A noite foi de insônia. Será que um homem de meia-idade, com mulher e três filhos, tem direito aos luxos da ética? Será que a seriedade profissional compensa quando há uma casa e um "estilo de vida" para pagar?
A resposta foi negativa. Ele regressou para o colégio, continuou com as suas aulas e corrigiu os exames com outros critérios.
Aliás, os critérios foram tão generosamente alargados que todos os alunos da turma terminaram o ano com a classificação mais elevada.
O professor regressou ao gabinete do diretor para ser informado que não era possível comunicar aos pais "a farsa das classificações elevadas". Não era "verossímil". E o colégio tinha um nome a defender. O professor estava "dispensado".
Quando perguntei ao meu amigo o que foi feito do seu colega, a resposta foi lacônica: deixou de dar aulas e desapareceu do circuito.
Lamentei, claro. Mas se tivesse que apostar, diria sem hesitações que ele não se dedicou aos famintos de África nem aos destinos dos ursos polares.