Folha de S. Paulo


Quatro filmes em cartaz mostram que o cinema está bem vivo

Ross McDonnell/Divulgação
CENA DO FILME AMOR E AMIZADE (LOVE AND FRIENDSHIP), a Jane Austen film adaptation starring Kate Bekinsdale and Chloe Sevigny, directed by Whit Stillman. CHURCHILL PRODUCTIONS LIMITED. Producers Katie Holly, Whit Stillman, Lauranne Bourrachot. Co-Producer Raymond Van Der Kaaij. Also Starring: Xavier Samuel, Emma Greenwell & Morfydd Clark ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Cena de 'Amor e Amizade', adaptação de Jane Austen estrelada por Kate Bekinsdale e Chloe Sevigny

"Amor e Amizade" de Whit Stillman

Quem diria: um americano conseguiu fazer a melhor adaptação de Jane Austen que já vi em cinema. Verdade que não falamos de um americano qualquer - quem assitiu a "Metropolitan" ou "The Last Days of Disco" sabe que Whit Stillman é o mais brilhante director da sua geração, embora talvez fosse mais correcto apresentá-lo como o melhor literato da sua geração. Nos filmes de Stillman, os diálogos são literatura pura. E só um literato seria capaz de transformar a infilmável "Lady Susan" em "Amor e Amizade".

Sejamos francos: "Emma" ou "Pride and Prejudice", nas suas estruturas convencionais, estão talhados para o ecrã. Cada capítulo, uma cena. O sonho de qualquer roteirista. Mas como filmar uma novela, erradamente tida por menor, que é apenas um longo conjunto de cartas trocadas entre os personagens principais?

É possível pelo talento de Stillman e pelo génio da própria Jane Austen, que em "Lady Susan" abandona a ironia branda dos romances e opta por um tratado sulfúrico sobre a natureza das mulheres. Sobretudo das mulheres que procuram fortuna e adultério (como Lady Susan) ou então da sua confidente, Alicia Johnson, uma dama muito dedicada ao marido e que reza dia e noite para que ele sucumba a crises de gota.

O filme de Stillman é uma "peça de câmara" sobre a arte da duplicidade - e isso só é possível porque a novela epistolar já facilitava esse baile de máscaras, consoante o destinatário. Para uns, Lady Susan confessa-se uma mãe devota, que deseja casar a filha Frederica com um pretendente respeitável; para outros, a filha é um ser débil e vulgar, "o tormento da minha vida", e um empecilho aos triunfos da matrona.

E se o leitor pensa que em "Lady Susan" haverá um final "justo" e "pedagógico", de acordo com o carácter de cada um, pensa mal. "Lady Susan" é o mais cínico e amoral dos textos de Austen ao mostrar como a virtude, estimável em teoria, nem sempre é o caminho infalível para chegar às felicidades terrenas.

Que esta novela seja repetidamente esquecida pelas vestais da sra. Jane Austen, não admira: a inesquecível e triunfante Susan Vernon estraga qualquer canonização.

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Divulgação
Cena do filme A corte [L'Hermine, França, 2016], de Christian Vicent (California Filmes). Genero: drama. Elenco: Fabrice Luchini, Sidse Babett Knudsen, Corinne Masiero
Fabrice Luchini como Michel Racine, o juiz implacável e apaixonado do filme 'A Corte'

"A Corte" de Christian Vincent

Fabrice Luchini é o único actor vivo que me obriga a sair de casa para assistir aos seus filmes. Não interessa se o filme é bom, razoável ou francamente débil. Eu estou ali para o ver a ele. Porquê?

Existe um diálogo em "A Corte" que resume o motivo. A assistente do juiz, impressionada pela forma como ele presidiu ao julgamento, pergunta-lhe se não se sente feliz. O personagem Michel Racine, ou talvez Fabrice Luchini "lui même", responde: "Feliz? Não sou assim tão ambicioso." Não conheço melhor definição para a persona que Luchini transporta de filme em filme, de vida em vida.

Sim, para os eruditos, são os obras de Éric Rohmer que verdadeiramente contam. Aceito a sapiência e não nego os méritos óbvios do actor em "Les Nuits de la pleine lune".

Mas a idade foi providencial ao temperar os excessos antigos de Luchini, conferindo-lhe a melancolia própria de quem acha que a felicidade é uma desmedida ambição. Em "Paris", "Dans la maison", "Alceste à bycyclette" lá temos o decandentismo de Luchini em acção, ou melhor, em inacção - e uso "decandentismo" no sentido próprio de quem celebra, sem celebrar, os méritos da rebeldia e da derrota.

"A Corte" não altera o programa. Michel é um juiz implacável, solitário, misantropo, temido e desprezado pelos pares, que se prepara para julgar um infanticídio. Entre os jurados, está Ditte (assombrosa Sidse Babett Knudsen), uma mulher que ele amou, que ele ama ainda. E quando Michel a revê na sua sala de audiências, existe no rosto pétreo do juiz a fragilidade embaraçosa que só os amantes experimentam.

Este milagre de representação continua no primeiro reencontro dos dois, e no segundo; e nas palavras que Michel lhe diz, e no pedido final que ele lhe faz. "A Corte" é um filme discreto e belo como as memórias que cultivamos em silêncio.

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"Rebecca - A Mulher Inesquecível" de Alfred Hitchcock (cópia restaurada)

Há cópia restaurada de "Rebecca - A Mulher Inesquecível" nas salas, o primeiro filme americano de Alfred Hitchcock. Vale a pena?

Depende. Na lendária entrevista a Truffaut, Hitchcock mostra-se desconfortável com a paternidade da donzela. Nunca percebi porquê. Se o cinema de Hitchcock é um bestiário assaz elegante de obsessão, desejo, neurose e medo, "Rebecca" pode ostentar orgulhosamente o nome da família. Com a vantagem de ter um tratamento estético que é simultaneamente uma homenagem e uma despedida ao expressionismo formal dos seus anos ingleses.

"Rebecca" é um filme de sombras, tais como as vemos deambular pelas paredes de Manderley. Mas a sombra que interessa, a sombra que sempre interessa, é o fantasma do elemento ausente. No caso, Rebecca de Winter, a sedutora e lendária Rebecca que paira sobre cada personagem com uma autoridade claustrofóbica. Paira sobre Max De Winter (Laurence Olivier, por uma vez suportável) que não se liberta do luto (ou será da culpa?) pela morte da mulher. Paira sobre a personagem inominada de Joan Fontaine, a nova sra. De Winter, e que mede a sua existência pela ausência do mesmo cadáver.

E paira sobretudo sobre a governanta Mrs. Danvers. (magistral Judith Anderson), a "viúva negra" (em vários sentidos da expressão) que nos surge como guardiã de uma memória e de um território.

No fundo, "Rebecca" encena um tema caro a Hitchcock: a forma como a tirania do passado vai urdindo uma teia de perdição sobre as suas presas. Alguns escapam - como o casal De Winter. Mas outros, na sua gélida imobilidade, entregam-se com a soberba dos mártires - tal como Mrs. Danvers na inesquecível sequência final.

Aliás, por falar em imobilidade, regresso à entrevista com Truffaut para recordar uma observação luminosa de Hitchcock, que só comprova o seu génio: em todo o filme, Mrs. Danvers é a única que nos surge (quase) sempre parada, impassível, como uma estátua que já não é deste mundo. É o prenúncio de um destino.

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"Francofonia" de Aleksandr Sokurov

Aleksandr Sokurov é um director que admiro e deploro em partes iguais. Nenhum problema, até porque desconfio que o sentimento é mútuo: o amor que ele tem pela cultura ocidental só tem paralelo com o ressentimento perante o Ocidente.

Formalmente, Sokurov é um "artista plástico" perfeito - e a sua "flânerie" museológica em "Arca Russa" e agora em "Francofonia" não acontecem por acaso. O problema é o resto: a ambiguidade moral que ele reserva para as suas meditações "civilizacionais".

Nada de novo. O filósofo Isaiah Berlin, no clássico "Russian Thinkers", apresentava a "intelligentsia" russa do século 19 a viver igual dilema: como abraçar a cultura do Ocidente e, ao mesmo tempo, não perder as raízes eslavas?

Sokurov sempre me pareceu um membro da "intelligentsia" oitocentista, embora perdido no século 21 (exactamente como o personagem do diplomata francês que deambula pelos salões do Hermitage em "Arca Russa"). E, como representante dessa tribo, Sokurov partilha as mesmas angústias históricas. Onde está a nossa grandeza? Onde está a nossa autenticidade? Como beber da fonte "europeia" sem sermos turvados pelas suas águas?

Estas perguntas, que poderiam ter sido formuladas por Herzen ou Belinsky, são explicitamente apresentadas em "Arca Russa" - e implicitamente em "Francofonia".

Ninguém duvida da admiração do autor pela cultura francesa, aqui materializada na recriação do Louvre sob ocupação nazista. Mas como esquecer o apelo inicial de Sokurov para que Tolstoi ou Chekhov despertem do seu sono sepulcral? E como esquecer o paralelismo - esteticamente brilhante, diga-se - que é estabelecido por Sokurov entre um Louvre "colaboracionista" e um Hermitage transformado em hospital e morgue durante o cerco a Stalingrad?

Assistir a "Francofonia" é contemplar a beleza que existe no nacionalismo ferido.


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