Folha de S. Paulo


As mulheres de Henry 8º

O conferencista agradece a presença do público. Depois, para não assustar ninguém, promete ser breve na sua exposição. E, com impecável humor britânico, afirma: "As Henry VIII used to say to his wives, I won't keep you long." Em português, uma tradução aproximada (e adaptada) ficaria assim: "Como Henry 8º costumava dizer a suas mulheres, isso vai ser rápido."

E, no caso de Henry, era rápido: depois de casar com Catherine, o monarca procurou o divórcio para "seguir com a vida" (e ter um filhão varão) com Anne Boleyn. O Papa não gostou da ideia e Henry fez as malas para se tornar ele próprio líder da Igreja Anglicana. Depois de Anne, vieram Jane, outra Anne e mais duas Catherines. Duas foram decapitadas às ordens do rei.

A audiência escutou o dito espirituoso do conferencista e algumas donzelas começaram a abandonar o espaço. O conferencista fez uma pausa no discurso, acompanhou a deserção, e quando se preparava para continuar, uma mulher levantou-se entre o público e pediu a palavra.

Disse que a piada era de "mau gosto" e lembrou a "violência contra as mulheres" que persiste nas nossas sociedades. Acrescentou que a referência à vida amorosa de Henry 8º era uma forma de glorificar o "feminicídio" e de "relativizar" a sua importância - ontem como hoje.

Escutaram-se aplausos. Um cavalheiro, tomado por emoção sincera, declarou-se "feminista com orgulho" e pediu a remoção do conferencista dos salões civilizados.

O conferencista, lívido e amedrontado, tentou responder às feras. O ruído impediu qualquer diálogo. Então ele levantou-se, saiu do palco...

... e eu acordei das minhas meditações insanas. Sim, aconteceu: tempos atrás, fui a uma conferência onde a piada - genial, diga-se - abriu a palestra. Mas o público riu e o especialista ofereceu 40 minutos de sabedoria épica.

Pena que eu não tenha escutado. Depois da piada, perguntei angustiadamente aos meus neurónios quantos anos faltam para que uma observação dessas, tão plena de humor e inteligência, seja impensável em certos circuitos letrados.

Quando partilhei a dúvida com colegas ali presentes, eles responderam sem hesitações: isso já é impensável. Ou, por outras palavras, são raros os encontros académicos onde a censura politicamente correcta não se abate com violência sobre as palavras.

E o mecanismo da proibição é sempre o mesmo: julgar qualquer acontecimento histórico ou passado com os valores do nosso presente. Falar com graça das mulheres de Henry 8º é tolerar as mulheres assassinadas do nosso cotidiano. Publicar livros de Monteiro Lobato é promover o racismo entre leitores e estudantes. Ensinar os grandes filósofos gregos é defender uma sociedade esclavagista e machista. E etc. etc., sempre em progressão imparável rumo à destruição e ao silêncio.

Não vou repetir argumentos gastos de que tudo isso representa ignorância anacrónica e empobrecimento histórico. Porque a minha angústia não era simplesmente "teórica". Era pessoal. Ruminando ainda sobre as mulheres de Henry 8º, eu próprio comecei a perguntar se seria capaz, hoje, em ambiente semelhante, de começar um discurso com duas cabeças decepadas.

(Sim, era. Não, não era. Sei lá.)

Invisivelmente, inconscientemente, insidiosamente, parece crescer em nós uma espécie de censor interno que está sempre vigilante, mesmo quando não estamos vigilantes.

O problema do pensamento politicamente correcto não está apenas na censura "de facto" que contamina e corrói as "humanidades", impedindo discussões livres e, por amor de Deus, bem humoradas.

Também está na auto-censura a que nos submetemos - uma espécie de medo preventivo que nos sufoca e definha.

Há gente que vive tranquilamente com isso: um estado de respeito permanente onde a vida é uma espécie de sonambulismo existencial. Mas eu não acredito que a natureza humana se contente com tão pouco. Você acredita?

"Nem só de ouro vive o homem", diziam os navegadores portugueses que descobriram o Brasil. "Também é preciso índias."

Leio o que escrevi e depois apago palavra após palavra.


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