Folha de S. Paulo


A sociedade do ressentimento

Comecei a viajar cedo. E, quando entrava no avião, espreitava com curiosidade os passageiros da primeira classe. Mais espaço, melhor alimentação, até as aeromoças pareciam mais belas e disponíveis (profissionalmente falando).

Confrontado com essa área restrita, dois sentimentos poderiam brotar da minha alma imberbe.

O primeiro era sentir "ódio aéreo" e, com a fúria dos ressentidos, amaldiçoar a sorte dos passageiros da primeira classe. Para que o ódio fosse realmente extremo, não seriam de excluir pensamentos homicidas (e obviamente suicidas) para que o avião se despenhasse em pleno voo. Só na destruição poderia haver igualdade verdadeira.

Estranhamente, nunca partilhei o código dos jihadistas. Sorria perante o luxo e depois esperava, interiormente, que talvez um dia eu pudesse passar para o outro lado. Se o jihadista vibra com a destruição, eu só pedia "conservação". Caso contrário, seria impossível desfrutar da experiência quando (e se) o momento chegasse.

Vejo agora que sou uma minoria. Uma matéria publicada nesta Folha explica por quê. Segundo um estudo do "Proceedings of the National Academy of Sciences", a "separação entre classes" (atenção aos termos) pode arruinar as viagens de avião.

Primeiro, porque os VIPs tendem a atrasar a decolagem (o que é, de fato, imperdoável: pontualidade é a primeira das virtudes sociais). Mas, sobretudo, porque a sensação de "segregação" atinge "a saúde, o bem-estar, as emoções e os comportamentos" dos passageiros da classe econômica.

Essa "guerra de classes" tende a radicalizar-se quando os passageiros da classe econômica passam pelos privilegiados no momento de embarque. E, durante a viagem, piora consideravelmente com a evidência das cortinas divisórias; com a impossibilidade de ir aos banheiros "deles"; e até com o cheiro da comida gostosa que é servida do outro lado da "vedação".

Não sei, honestamente, como resolver o "ódio aéreo" que cresce assustadoramente entre a plebe. Mas, se o conceito é para ser levado a sério, então teremos que ponderar outros ódios sociais que podem atacar qualquer alma ressentida, enfraquecendo a sua preciosa saúde.

Como tolerar a existência de restaurantes com estrelas Michelin quando a maioria só pode alimentar-se na lanchonete do bairro ("ódio gastronômico")?

Será legítimo permitir que as elites comprem Bentley ou Maseratti quando o povão dirige modestos Fiat ("ódio rodoviário")?

E como responder à soberba de alguns, que vão a Paris comprar na Charvet ou a Londres na Savile Row ("ódio de toalete")?

Marx e Lenin, os dois grandes mestres do ressentimento, falharam criminosa e clamorosamente quando procuraram abolir as desigualdades pela força revolucionária.

Mas talvez a medicina, essa grande deusa da era contemporânea, possa fazer hoje o que as utopias políticas não conseguiram no século 20. Exibições de classe são lesivas para "a saúde, o bem-estar, as emoções e os comportamentos" de quem se sente excluído?

Então o caminho talvez passe por abolir tais insultos, enviando os mais ricos para o mesmo gueto onde já vivem os fumantes —um planeta paralelo, onde não entram pessoas de bem.

Claro que uma tal solução pode levantar um problema adicional: e como proteger esses ricos dos malefícios do fumo passivo?

Pergunta ridícula. Se os fumantes já se matam a eles próprios, a cultura do ressentimento até agradece que os viciosos possam levar os ricos com eles.


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