Folha de S. Paulo


Um pouco de intolerância, por favor

Duas notícias, dois casos de intolerância.

Lionel Messi foi a um programa de tv no Egito. Decidiu oferecer as chuteiras para posterior leilão. O dinheiro obtido teria como fim instituições de caridade.

O país revoltou-se contra o gesto do argentino. Para um deputado egípcio, Messi tem a imperdoável soberba de considerar os egípcios literalmente pés-rapados. E, claro, é preciso recordar que nos países árabes os sapatos são uma ofensa quando mostrados a alguém.

Um pouco mais a oriente, Leonardo DiCaprio, na sua pose ridícula de "ecologista", lamentou na Indonésia o impacto da indústria de óleo de palma nas florestas tropicais. O país também entrou em ebulição e as autoridades da Jacarta ponderam considerar o ator como "persona non grata", impedindo-o de regressar ao país.

Exageros? Com certeza. E casos extremos de intolerância cultural, embora uma proibição de entrar na Indonésia me pareça uma benção, e não necessariamente um castigo.

Mas às vezes pergunto se os egípcios ou os indonésios não terão a mais o que os ocidentais têm a menos.

Longe de mim defender a intolerância: discípulo de John Locke e da sua "Carta" sobre a matéria, considero a tolerância o valor "liberal" mais precioso. O Estado deve "tolerar" diferentes concepções de vida, sem a arrogância de "legislar sobre as almas dos homens"? Assino por baixo.

Mas até Locke sabia que a tolerância tem limites: quando a segurança e a ordem "seculares" são ameaçadas pelos intolerantes, a neutralidade do Estado deve acabar.

Não defendo a intolerância, repito. Defendo apenas uns pós da dita cuja –um leve tempero, como o sal na comida, só para evitar que o repasto perca o seu gosto. E o repasto é a possibilidade de viver em sociedades livres, pluralistas, tolerantes e decentes, onde cada um vive sem temor.

Se, na minha cidade, existem pregadores que aconselham os fiéis a matar os infiéis, deve haver esse tempero para eles.

Se uma minoria dos refugiados que chegam à Europa gosta de ostentar as bandeiras negras do "Estado Islâmico", um pouco de intolerância para eles é igualmente recomendável.

Se as mulheres ocidentais são obrigadas a viajar em carruagens de trem exclusivamente femininas por motivos de segurança (acontece na Alemanha), é legítimo perguntar se o grande desafio das sociedades abertas não será reaprender esse mínimo de intolerância para que essas mesmas sociedades continuem abertas.

O contrário desse mínimo não será a rendição absoluta perante a intolerância dos outros. Pelo contrário: será o regresso às grandes intolerâncias do passado –governos musculados e extremistas, para os quais "um pouco de intolerância" será insuficiente.

Aqueles que defendem uma tolerância sem limites são os mesmos que preparam o palco para a intolerância sem limites. Depois, quando os vemos chorar sobre leite derramado, só com grande tolerância podemos suportar o sofrimento desses órfãos que mataram a própria mãe.


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