Folha de S. Paulo


Diário da Europa

A vida não está fácil para os fumantes. Brevemente, os pacotes de cigarros em Portugal terão imagens grotescas para combater o grotesco vício. Haverá cadáveres, pessoas amputadas, outras a cuspir sangue. Desconheço se alguém pensou em abutres debicando uma traqueia apodrecida. Fica a sugestão. Porque a causa é nobre: um mundo sem fumantes e um sistema nacional de saúde que não perde tempo nem recursos públicos com doenças perfeitamente evitáveis.

Claro que algumas almas hereges perguntam se o argumento dos "recursos públicos" é razoável. Zoe Willliams, uma das poucas colunistas legíveis do "The Guardian", escreve que muitas doenças relacionadas com o fumo também podem surgir por acaso. Todos conhecemos doentes de câncer de pulmão que praticavam jogging diariamente e rezavam três vezes por dia à deusa do vegetarianismo.

A esse argumento, seria possível acrescentar outro: os fumantes pagam impostos como qualquer um; aliás, para sustentarem o vício, eles pagam muitíssimo mais - uma quantia que, ao contrário do vício, o Estado não considera infame. É lógico presumir que quem paga assim espera no mínimo ser tratado como os outros.

Temo que nada disso perturbe o processo em curso. E o processo em curso, como acertadamente escreve Zoe Williams, consiste em transformar os fumantes em seres infectos, inumanos, sub-humanos, que em caso de doença, qualquer doença e independentemente da causa, não merecem a mais vaga simpatia da comunidade.

Desconfio até que a vontade da maioria era enviar os fumantes para guetos urbanos, onde eles pudessem viver, fumar e morrer sem espalhar doenças ou causar prejuízos.

Lá chegaremos. Por enquanto, a imagem dos abutres e das traqueias já seria um bom começo.

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Tenho inveja das pessoas que conseguem ler vários livros ao mesmo tempo. Um colega universitário disse-me há uns anos que o seu recorde pessoal eram 8 livros em simultâneo: lia o capítulo de um, o parágrafo de outro, uma passagem de outro ainda - até chegar, imagino, ao índice onomástico do oitavo.

Não consigo. Em termos de ritmo, a equação andará nas 400 páginas por dia. Mas sou como Casanova: dedico a cada amante uma paixão e atenção totais. Pelo menos, antes de passar à seguinte.

Por isso aplaudo uma livraria japonesa - a Morioka Shoten - que só vende cópias de apenas um título por semana. Durante aquela semana, o livro escolhido terá dedicação exclusiva em matéria de propaganda e vendas - uma forma de combater a excesso material e visual das livrarias clássicas.

É uma bela ideia. E realista, também: se o ano tem 48 semanas, duvido que se publiquem nesse ano mais do que 48 livros que valem realmente a pena.

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Em 1976, ano em que eu nasci, um desconhecido Sylvester Stallone filmava "Rocky". A obra venceu os prêmios principais da indústria e, com pena minha, inaugurava uma sucessão de mediocridades que só envergonhava a poética crueza do original.

Ainda hoje, quando assisto a "Rocky", acompanho a solitária odisseia do personagem homônimo com a empatia que só concedemos aos heróis de carne e osso - vagabundos como nós, sonhadores como nós, derrotados e vencedores como nós.

Não posso dizer que "Creed" (estreia no Brasil dia 14) tenha o mesmo impacto desse "Rocky" de 1976, embora a narrativa seja semelhante: o filho ilegítimo de Apollo Creed, primeiro adversário de Rocky, procura o envelhecido Balboa para ser treinado por ele. Sobretudo porque há um combate para o título - combate imprevisto, combate impossível, exatamente como no primeiro filme.

Porém, existe em "Creed", escrito e filmado por Ryan Coogler, o que também existia no original "Rocky": uma interpretação colossal de Stallone. Aliás, para sermos rigorosos, Stallone não interpreta um papel; ele interpreta uma vida.

Nos olhares, nos gestos, nos silêncios, nas palavras (poucas), eis o exemplo de como não é preciso ser um grande ator para inscrever um personagem na memória da arte.

Os especialistas dizem que há um Oscar de coadjuvante à espera de Stallone. Se for verdade, teremos uma interpretação que honra o prêmio (e não ao contrário).

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Como morreu o Homem do Gelo, simpaticamente conhecido por Ötzi, há 5300 anos? A pergunta sempre intrigou a humanidade, que dia e noite vivia na angústia de uma resposta.

A angústia terminou: cientistas de vários países espreitaram para o estômago da múmia e concluíram que o nosso Ötzi sofria de gastrite. O que significa que no momento em que ele foi morto (por uma seta e um golpe na cabeça), Ötzi estaria enfraquecido pelos seus problemas digestivos, quem sabe intestinais. Não é de excluir uma morte traiçoeira, com Ötzi agachado, incapaz de se defender.

A descoberta é interessante, não apenas por motivos científicos - mas também cinematográficos. Lemos sobre o funesto destino de Ötzi e recordamos imediatamente a sequência de "Pulp Fiction" em que o personagem de John Travolta é liquidado em pleno vaso sanitário.

Esperemos que os descendentes de Ötzi, onde quer que estejam, não levem Quentin Tarantino a tribunal por usurpação de direitos autorais.

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Sempre que um adolescente me pergunta por "sugestões de carreira", aplico-lhe o chamado "teste de Auschwitz", que me foi ensinado há uns anos por um amigo inglês. No fundo, consiste em iluminar o mancebo sobre as profissões futuras que o salvariam em situação de catástrofe.

Exemplo: o jovem em questão pensa em cursar história, filosofia, psicologia? Aconselho antes profissões eminentemente práticas - medicina, engenharia, até culinária. Se o jovem tem ambições artísticas, a minha preferência vai para a música (sempre serve de entretenimento). Se a inclinação é desportiva, não há dúvidas: boxe, claro. Permite apostas entre os guardas prisionais e noites de farra com álcool à mistura.

Durante uns tempos, sentia-me culpado por estas considerações apocalípticas. Sei agora que não estou sozinho: um artigo do "Daily Telegraph" informa-me sobre os raciocínios que as aeromoças produzem quando recebem os passageiros à entrada do avião.

Pensava eu que o momento era "simpático" e "desinteressado": uma forma de receber bem quem entra na lata.

Erro. Quando entramos no avião, a profissional é uma espécie de robô que nos trespassa com um laser ocular.

Em poucos segundos, ela consegue distinguir os passageiros fisicamente aptos dos fisicamente inaptos. Os fisicamente aptos podem ser chamados quando existem conflitos a bordo. Os fisicamente inaptos serão afastados de lugares "sensíveis" (saídas emergência, por exemplo) e remetidos para as margens das "zonas de potencial conflito".

De hoje em diante, os meus conselhos vocacionais serão duplos: "Estuda medicina para a vida real. Mas na hora de viajar de avião, faz como eu: escolhe um curso de letras e dorme a sesta até chegar ao destino."

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O ano começou e a imprensa informa que não houve festejos em Bruxelas: as autoridades belgas, amedrontadas com a possibilidade de ataques terroristas, preferiram o recato e o silêncio.

Verdade que Bruxelas não foi caso único: na Faixa de Gaza, o Hamas também não permitiu animação. Não, obviamente, porque o Hamas receia o terrorismo -isso seria tão bizarro como um peixe com medo da água. Mas porque a virada do ano é uma festa de infiéis, que não se ajusta aos rigores do calendário islâmico.

É uma bela metáfora que o início de 2016 nos traz: Bruxelas e Gaza podem estar separadas pela distância, não pelo espírito. O futuro da Europa promete.

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O Ocidente e o resto: haverá diferenças? Pior: haverá qualquer superioridade do primeiro sobre o segundo - em questões de tolerância, pluralismo, democracia, desenvolvimento econômico e etc. etc.?

Os céticos multiculturalistas duvidam. Os céticos multiculturalistas deveriam ter prestado atenção ao brasileiro de 44 anos que entrou nu na Basílica de S. Pedro, em Roma.

Desconhecem-se os motivos da proeza. E Roma, em janeiro, tem temperaturas que não se recomendam. Mas ao ler a história desse enfermeiro paulista, é inevitável não perguntar o que teria sucedido se o personagem em questão tivesse optado antes pela prática nudista em mesquitas sagradas de Meca ou Teerã.

Suspeito que o tratamento psiquiátrico a que ele foi submetido em Roma teria seguido outras terapêuticas nas Arábias.


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