Folha de S. Paulo


Quando ela não volta

Ah, como é pobre o mundo dos simples! Pensei nisso quando assistia a "Que Horas Ela Volta?" e recordei as reações críticas que o filme de Anna Muylaert teve. Basicamente, e para sermos tão básicos como os básicos, existem duas escolas de "pensamento" (digamos assim).

Para os marxistas ortodoxos, o filme não é uma denúncia suficientemente dura do "conflito de classes" que existe no interior das casas da classe alta paulistana. A empregada Val (Regina Casé) não é tão bolchevique como os bolcheviques gostariam.

Do outro lado, temos os anti-marxistas ortodoxos. O filme é mera caricatura esquerdista da empregada santa e dos patrões vis que exploram o suor do proletariado.

Alguns, permanentemente assombrados pelo fantasma do PT, chegavam mesmo a questionar se não teria sido Lula a dirigir o filme —a filha da empregada, Jéssica (Camila Márdila), representa o Brasil em ascensão que as políticas do PT promoveram durante uma década.

Não pretendo interferir nessa guerra. Concordo com a maioria dos críticos portugueses que só agora receberam o filme nas salas lusas: "Que Horas Ela Volta?" merece um sorriso de empatia. Existem boas razões para esse sorriso.

Regina Casé, como Val, é um deles: o naturalismo da atriz e a composição do sotaque nordestino são uma mistura perfeita de instinto e técnica que contamina todo o filme.

E a câmera de Anna Muylaert mostra uma inteligência visual que merece respeito. Desde logo, pela forma como Muylaert filmou os próprios espaços da casa —um prolongamento narrativo para reforçar os dois mundos que separam a mãe e a filha.

Antes da chegada da filha para prestar vestibular na USP, a sala de jantar é apenas vislumbrada através da porta da cozinha; o quarto do patrão e do filho é território onde não entramos. E, quando Val entra, nós ficamos à porta.

Tudo se altera quando Jéssica chega: os espaços abrem-se e a câmera de Muylaert vai entrando em todos eles, como se profanasse território sacro que a mãe ainda pisa com reverência. É uma mensagem esteticamente subtil para indicar que existe um outro Brasil que não aceita a tradicional "submissão dócil" que sempre fez parte do jogo.

Quando assistia a essa "submissão dócil" foi impossível não lembrar o meu velho irmão Joaquim Nabuco e as páginas de "Minha Formação", em que ele relata a fantasmagórica visita ao cemitério dos escravos. O que impressionou Nabuco era que naquelas sepulturas estavam homens e mulheres que, contra toda a lógica, viveram e morreram sentindo-se gratos aos seus senhores.

Obviamente que o filme não tem a profundida ética dessas páginas. Mas é também essa gratidão, tão antiga e entranhada na alma de quem serve, que existe no olhar, nos gestos e no comportamento de Val.

Mas Nabuco é igualmente útil para entender a importância que a "substituição" e a "simpatia" têm na vida social, entendendo-se por "substituição" e "simpatia" o mesmo que Adam Smith na sua "Teoria dos Sentimentos Morais": a nossa capacidade para nos colocarmos no lugar do outro e imaginarmos o seu mundo, os seus valores, os seus princípios, as suas privações. Foi essa capacidade que transformou Nabuco no supremo abolicionista.

O filme de Anna Muylaert mostra a ausência de "substituição" e "simpatia" nos donos da casa. Sim, eles são gentis, acolhedores, "simpáticos" no sentido prosaico da expressão. Mas trata-se apenas de um código de cortesia, não do reconhecimento pleno de que existe ali um semelhante. Quando Val não serve o doce ou o café, ela é invisível para eles.

De resto, a caricatura marxista de uma burguesia que explora o proletariado não sobrevive à forma serena como Muylaert filma "as coisas como elas são". E essas "coisas" estão resumidas no título do filme. "Que horas ela volta?" é a pergunta que as crianças fazem quando estão longe dos pais. E não era apenas Jéssica, filha da empregada, que perguntava em Pernambuco "a que horas" a mãe voltaria.

Essa é a mesma pergunta que Fabinho (Michel Joelsas), o filho da patroa, coloca a Val na sequência inicial do filme. Para inverter a gramática marxista, a "alienação" também habita a alma das "classes possidentes": a mãe ausente que perdeu o afeto do filho; o pai tomado por um "taedium vitae" patológico e ridículo.

"Que horas ela volta?" é sempre uma pergunta que fica sem resposta num país onde só as crianças parecem inocentes.


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