Folha de S. Paulo


A liberdade dos escravos

Nunca li "Moby Dick" de Herman Melville. Sou como o personagem de um filme de Woody Allen (o inconfundível "Zelig") que adia constantemente a leitura da obra. Talvez por temer que o cumprimento de tal tarefa apresse desnecessariamente a sua própria mortalidade.

O mesmo acontece comigo. Enquanto "Moby Dick" estiver intacto, eu próprio estarei intacto. Porque há, pelo menos, a ilusão de um tempo futuro para que a leitura seja cumprida. Quando olho para "Moby Dick" na minha estante, murmuro interiormente: "Prefiro não o fazer".

E, com essa frase, remeto-me modestamente para outra obra de Melville –um conto, para ser mais preciso– que está editado e bem traduzido no Brasil.

Refiro-me a "Bartleby, o Escrevente" (Autêntica Editora) e às mil vezes que li a narrativa procurando um significado para ela.

"Bartleby, o Escrevente" é a história de Bartleby, um escrevente, contada por um advogado que o contrata para o seu escritório em Wall Street. No referido escritório, já existem outros três copistas: o irascível Turkey, que só funciona de manhã; o hipocondríaco Nippers, que só funciona à tarde; e Ginger Nut, que funciona a qualquer hora como criado dos outros dois.

Bartleby é diferente e o próprio narrador não sabe como o definir. Ele chega, começa os seus trabalhos de forma "silenciosa" e "mecânica" e tudo corre bem enquanto Bartleby produz bem.

Mas chega um dia em que, confrontado com uma nova tarefa, o escrivão responde simplesmente: "Eu prefiro não a fazer."

O pasmo é geral. E continua geral nos dias seguintes, quando a frase é repetida com naturalidade por Bartleby. "Não fazer" transforma-se no seu modo de acção.

Críticos vários, confrontados com o conto, já ofereceram explicações várias. Existem duas escolas, que qualquer aluno americano encontra naqueles manuais "for dummies", e que tentam "racionalizar" a atitude de Bartleby.

A primeira vê o personagem como uma espécie de anarquista literário: existe na recusa de Bartleby a condenação implícita de qualquer autoridade ou exploração, mesmo que isso implique, como de fato implicará, um destino funesto para ele.

A segunda, pelo contrário, rejeita a passividade de Bartleby e relembra que o seu solipsismo também é rejeitado pelo próprio Melville: ao preferir "nada fazer", Bartleby anula-se –existencial e fisicamente.

Respeito os sábios e não tenciono participar no debate. Até porque o mistério continua mistério para mim –e Melville nunca se esforçou por explicá-lo. Bartleby pode ser tudo e o seu contrário. Mas a frase continua: "Eu prefiro não o fazer."

É a frase que fica. E o mais impressionante é que os anos passam; as solicitações para dizermos "sim" são cada vez maiores, cada vez mais opressivas. E só então percebemos o que existe de heroísmo, de trágico heroísmo, naquele homem insignificante que, do fundo da sua insignificância, tem ainda a coragem, a loucura, ou uma mistura de ambas, para proferir a mais difícil das palavras que existem. A palavra "não".

E então eu pergunto: quantos, entre nós, usam essa pequena palavra nas tentações do cotidiano? Quantos, no fundo, estão dispostos a trocar a segurança confortável da submissão pela firme recusa dessa submissão?

E quantos estão dispostos a pagar com o ostracismo ou coisa pior pelo fato singelo de preferirem "não fazer"?

Bartleby é um dos meus heróis. Mas, relendo o conto, reparo também que existe uma secreta admiração do advogado pelas recusas de Bartleby. Como se Bartleby representasse tudo aquilo que o advogado reprimiu para sobreviver.

Elementar: como dizia um alemão célebre, faz parte da natureza das coisas que, entre o escravo e o seu senhor, seja o escravo a conhecer no fim uma liberdade mais autêntica.


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