Folha de S. Paulo


Tocqueville e o Tiririca americano

Minha última coluna ("O Tiririca americano", 27/7 ) despertou a ira de vários leitores. Motivos? Escrevia eu que Donald Trump era fenômeno eleitoral porque a democracia, às vezes, gosta de premiar artistas de circo. A acusação do auditório foi unânime: eu era um antidemocrata porque não respeitava a vontade da maioria. Que posso fazer?

Declarar-me culpado (sim, nem sempre respeito a vontade da maioria) e procurar refúgio em "A Democracia na América", o clássico de Alexis de Tocqueville (1805 - 1959) que ele escreveu depois de visitar o país em 1831. Não conheço melhor livro sobre a democracia (em geral) e sobre a democracia americana (em particular).

Mais: Tocqueville é tão sábio que ele explica Donald Trump com mais de 150 anos de antecedência.

Para começar, o objetivo do aristocrata francês era assaz meritório: conhecer a República e a nova "era da igualdade" que nascia do outro lado do Atlântico. Mas havia um segundo objetivo: se a "era da igualdade" era inevitável, haveria ainda espaço para a liberdade?

Tocqueville acreditava que sim: a força da sociedade civil; a independência do judiciário; o papel da religião; a existência de uma imprensa livre —tudo isso concorria para defender a liberdade no contexto democrático. Mas nada disso significava que a democracia não apresentasse fraquezas e mesmo perigos.

O maior dos perigos era a "vontade da maioria" degenerar na "tirania da maioria": em democracia, a vontade do maior número pode suplantar vozes minoritárias, mas nem por isso menos nobres, que não encontram espaço perante o grande consenso majoritário.

Isso é um problema porque, às vezes, as maiorias são ignorantes, irracionais, violentas, autoritárias, sobretudo quando alimentadas por um igualitarismo radical e por um descontrolado materialismo.

O igualitarismo radical manifesta-se, por exemplo, na forma como os governados olham para os governantes. Fato: desconfiar dos políticos é sempre um gesto prudente. Vigiá-los, idem. Mas não é prudente partir do pressuposto cego de que todos os políticos são igualmente desprezíveis e que não existem diferenças —de mérito, valor etc.— entre eles.

No fundo, Tocqueville indagava: removido o verniz e a solenidade aristocráticas, a perda de um "sentido de hierarquia" poderia conduzir a sociedade democrática ao que hoje designamos por niilismo moral. Quando dizemos que todos os políticos são iguais, então estamos logicamente a aceitar que não há diferenças entre um governo corrupto e, digamos, um governo menos corrupto (no mínimo). Nenhuma sociedade sobrevive em liberdade perante esse nivelamento.

Sobre o materialismo, o mesmo raciocínio: quando a única coisa que interessa ao indivíduo é encher os bolsos, a pergunta imediata é saber quais a consequências para uma sociedade que passa a adorar o dinheiro sobre qualquer outro valor —a honestidade, a honra, a competência, a mera decência pessoal etc. As consequências não são inspiradoras.

Disse que Tocqueville explica o fenómeno Donald Trump com mais de 150 anos de antecedência. Repito. Na campanha para a indicação republicana, Trump insulta imigrantes, colegas, mulheres —a última pérola foi sugerir que uma jornalista era agressiva com ele porque estava em plena menstruação. Muitos dos seus camaradas começam a afastar-se de Trump.

Mas ele segue em frente com apoios significativos e, caso decida avançar com uma candidatura independente (eu duvido), pode roubar aos republicanos a possibilidade de vitória em 2016. O sucesso de Trump justifica-se pelas exatas fraquezas que Tocqueville vislumbrou na democracia americana.

Primeiro, porque o cinismo absoluto dos eleitores faz com que eles olhem para Washington e sejam incapazes de ver diferenças entre a classe política. "São todos iguais." Trump não é igual: ele, pelo menos, diverte e insulta.

Mas a admiração por Trump também é a admiração pelo dinheiro que ele exala. Aqueles que apoiam Trump são os mesmos que gostariam de ter a riqueza do sujeito. Como se a riqueza fosse o princípio e o fim de qualquer conversa civilizada em democracia.

Não é. E se a maioria acredita que sim, eu não serei menos democrata por simplesmente afirmar que a maioria está errada.

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O colunista sai em férias a partir da publicação desta coluna, retornando em 7 de setembro


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