Folha de S. Paulo


Flatulências excessivas

Anos atrás, entrei num restaurante de Lisboa para um almoço de trabalho com um jornalista português. Cheguei com 20 minutos de atraso. O espaço estava lotado.

Deambulei pelas mesas e não havia sinal do meu comparsa. Falei com o maître. Disse que tinha um encontro com um colega e perguntei se havia algum cavalheiro sozinho no espaço, à minha espera. Ou, pelo menos, se alguém ali estivera e resolvera ir embora.

O funcionário perguntou-me como era o camarada. Gelei. Comecei por considerações vagas. Moreno. Quarenta e tal anos. Altura média. "Isso não é grande ajuda", disse ele, gracejando. Subi a parada.

- Gordinho.

Nada.

- Gordo.

Nada.

- Uma coisa monstruosa.

Mentira. Fiquei pelo "gordinho", pronunciado a medo, e o rosto do homem iluminou-se. "Sim, senhor: creio que está no bar". E estava.

Foi a primeira vez que senti o demônio da autocensura sobre as minhas inocentes palavras. Não é elegante descrever fisicamente alguém para identificação. Mas, aqui entre nós, não é elegante por quê? Se alguém é gordo (ou magro); negro (ou branco); deficiente (ou atleta olímpico), por que motivo não usamos as palavras exatas para traduzir uma realidade exata?

Não serão os eufemismos ("ele parece um lutador de sumô"; "ele tem um tom de pele mais noturno"; "ele tem limitações na locomoção física") um insulto ainda pior? Gordo, negro, deficiente: por que motivo as coisas não são simplesmente como são?

O linguista John H. McWhorter, em artigo para o "The Wall Street Journal", ajuda a responder: porque todas as eras têm as suas "profanidades".

Na Idade Média cristã, as palavras proibidas eram invariavelmente de natureza religiosa. Invocar o nome de Deus em vão era pecado capital e os nossos antepassados, para evitarem o "Oh God!", optavam pelas variantes "Oh gosh!" ou "Oh golly!", que ainda hoje sobrevivem na linguagem coloquial anglo-saxônica.

As coisas começaram a mudar na Idade Moderna: com a emergência de uma burguesia fluente e afluente, que procurava refinar os seus hábitos e comportamentos, as "profanidades" interditas começaram a lidar com matérias físicas, e não metafísicas. Alusões sexuais (ao ato e aos órgãos respectivos) ou escatológicas (ao ato ou às matérias expelidas) quase desapareceram do linguajar.

De fato, confere: quando olhamos para os textos medievais, a genitália de ambos os sexos era usada e abusada sem sentimento de culpa. O que se entendia: se o corpo era matéria perecível e pecaminosa, o que saía dele (ou entrava) não merecia grandes pudores.

Foi preciso esperar pelo século 18 para que o temor a Deus se convertesse no temor à vulgaridade: criticar a Igreja e os seus prelados, tudo bem; gastar o latim com a fornicação e a flatulência, tudo mal. E hoje?

Hoje, as "profanidades" contemporâneas lidam com a sensibilidade de "grupos" ou "minorias", sobretudo quando repousa sobre eles a sombra das discriminações presentes ou passadas. Blasfemar contra Deus ou apimentar a conversa com as intimidades do quarto é moeda corrente. Falar sobre negros, mulheres, gays ou anões é caminhar sobre campo minado.

Não admira que, na visita ao Quênia, o discurso mais aplaudido de Barack Obama tenha sido uma defesa dos direitos dos homossexuais no país. Fato: denunciar um sistema judicial que criminaliza a homossexualidade com penas de prisão é um ato nobre do presidente.

Mas Obama não se limitou a falar desse assunto: a endêmica corrupção do país, por exemplo, foi outra das suas preocupações. A corrupção no Quênia é um dos principais motivos para que a ONG Freedom House considere o país como "parcialmente livre". Alguém notou?

No seu ensaio sobre a história das "profanidades", John McWhorter mostra como os tabus de ontem –Deus, sexo, escatologias várias– deixaram de fazer sentido no século 21.

O que permite concluir que a preocupação histérica com a sensibilidade de "grupos" ou "minorias" será incompreensível para os homens do século 22. Que, por sua vez, terão novos tabus que somos incapazes de imaginar ou antever. Porque seremos sempre incapazes de imaginar ou antever aquilo que nos irá amedrontar no longo prazo.

No fundo, talvez esta seja a moral da história: não vale a pena marchar com indignação pela causa politicamente correta do momento. Ela estará morta no futuro e você, leitor, será apenas lembrado como piada.


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