Folha de S. Paulo


De olhos bem fechados

Os seres humanos nunca suportaram demasiada realidade, dizia o poeta. A frase transformou-se em clichê. Mas os clichês existem por um motivo: normalmente, são verdadeiros.

Passaram 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. E quando o mundo lembra 1945, eu lembro 1939. Quando tudo começou.

Historiadores vários sempre disseram que as origens da Primeira Guerra Mundial eram mais difíceis de entender do que as origens da Segunda. Talvez.

Embora, no caso de 1914-1918, o conflito sempre me pareceu uma mistura óbvia de ressentimentos nacionalistas, ingenuidade bélica –e respeito sagrado pela palavra e pelos tratados defensivos firmados, típico da era aristocrática que as trincheiras enterraram de vez.

No caso da Segunda Guerra, as origens são fáceis de entender: Hitler marchou sobre a Polônia e quebrou a última ilusão dos "apaziguadores". Mas difíceis de entender são as ilusões propriamente ditas. Será possível recuar a 1933, quando Hitler se tornou chanceler alemão, e não vislumbrar o filme todo?

Falo da política interna e da política externa da Alemanha. Em relação ao primeiro quesito, os mais cegos dos cegos ainda poderiam conceder ao tirano o benefício da dúvida.

Mas, 18 meses depois de chegar ao poder, não restavam mais dúvidas: a Alemanha era uma ditadura governada por um gângster, que dizimava opositores políticos, forças paramilitares que não controlava (os "camisas castanhas" de Ernst Röhm) –e, a partir de 1935, uma máquina de perseguição aos judeus, com as Leis de Nuremberg, em que estava todo o programa antissemita do Reich.

Mas se esses eram os sinais internos, que dizer dos ensurdecedores alarmes externos?

No seu "Mein Kampf", Hitler declarava, como os jihadistas islâmicos de hoje, o que pretendia fazer com o poder que (ainda) não tinha: rasgar o Tratado de Versalhes; unir os povos germânicos sob o seu chicote; e conseguir "espaço vital" a Leste para a grandeza perdida da Alemanha.

Uma vez mais, os mais cegos dos cegos poderiam voltar a conceder o benefício da dúvida, dizendo que o livro era um delírio de juventude. Mas, a partir de 1935, também já não havia qualquer dúvida: o livro não era um delírio de juventude.

A Alemanha, rasgando o Tratado de Versalhes, rearmava-se perante o silêncio das potências europeias; em 1936, marchava sobre a Renânia; em 1938, anexava a Áustria; com o beneplácito do Reino Unido e da França, devorava a Tchecoslováquia (primeiro, a região dos sudetos; depois, o país inteiro). A Polônia era uma questão de tempo –e uma conclusão lógica. Como foi possível tapar os olhos na década de 1930?

Conheço as explicações tradicionais: a dolorosa memória das carnificinas da Primeira Guerra, que ninguém desejava repetir; a ideia de que a Alemanha poderia ser um mal necessário para controlar a influência bolchevique no continente europeu –tudo isso pode ter paralisado a Liga das Nações e os seus vetustos membros.

Mas é preciso mais que isso: uma certa covardia moral para ver a realidade exatamente como ela é. Uma recusa do literal, digamos, que consiste em negar ao inimigo as intenções claras que ele afirma e pratica.

Escusado será dizer que essa covardia e essa recusa do literal continuam. E se falei dos jihadistas radicais não foi por acaso.

Hoje, os terroristas que matam em nome do Profeta não negam os seus objetivos –e, mais que isso, dizem com todas as letras qual é o programa de festas: a submissão dos infiéis pela força da espada e a reconstrução utópica de um Califado.

Perante isso, a reação da "intelligentsia" ocidental é semelhante à reação dos "apaziguadores" da década de 1930: uns, preferem não ver ou escutar; e aqueles que escutam normalmente apagam as palavras alheias com as suas próprias palavras.

O problema é a pobreza, dizem; ou Israel; ou os Estados Unidos; ou o Ocidente; ou o rato Mickey –tudo, exceto a declaração explícita dos fanáticos de que não admitem negociação ou compromisso.

Em 1945, o mundo tinha 60 milhões de mortos para enterrar. A loucura de Hitler explica muita coisa. Mas a covardia de gente sã, ontem como hoje, explica muito mais.


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