Folha de S. Paulo


Copas imundas

A única coisa que espanta sobre Vladimir Putin são aqueles que lhe concedem o benefício da dúvida. Bizarro.

O homem já declarou, com lágrimas nos olhos, que o fim da União Soviética foi a maior tragédia do século 20. (O comunismo soviético, para que conste, terá matado 20 milhões de seres humanos.)

O homem, um ex-agente da KGB, invadiu a Geórgia, continua a combater na Ucrânia (o cessar-fogo é fumaça para otários) e agora até iniciou operações militares nas fronteiras da Estônia e da Letônia, duas antigas repúblicas soviéticas.

Sem falar do longo rol de mortes suspeitas de críticos ou opositores políticos –Alexander Litvinenko, envenenado em Londres em 2006; Anna Politkovskaya, jornalista assassinada em Moscou no mesmo ano; Boris Nemtsov, abatido junto da Praça Vermelha dias atrás.

Apesar de tudo, e de tanto, o mundo dá esse benefício da dúvida a Putin talvez por acreditar, como os "pacifistas" da década de 1930, que a realidade não será exatamente negra. Putin, com medo de isolamentos diplomáticos, sanções econômicas ou hilariantes ameaças militares, irá abandonar o seu sonho de um império soviético restaurado.

Infelizmente, no meio da farsa, esperavam-se pelo menos algumas humilhações simbólicas. Como, por exemplo, um boicote maciço à Copa do Mundo de 2018, na Rússia.

Sim, só vozes minoritárias defendem esse expediente. Mas como é possível participar do torneio quando o governo que o recebe é uma nódoa em matéria de direitos humanos?

Fato: a FIFA não é exemplo para ninguém. Basta relembrar o processo que levou à vitória do Qatar na organização da Copa de 2022. O país é um forno e, segundo informações reveladas pela imprensa, houve corrupção em quantidades colossais para garantir a vitória do país.

Minudências. A única atitude que a FIFA tomou, depois de se conhecer a dimensão do escândalo, foi ponderar uma Copa em dezembro, quando o deserto começa a ter temperaturas, digamos, um pouco menos infernais. Isso é para rir?

Talvez. E quem fala da FIFA fala do Comitê Olímpico Internacional, que nem hesitou em atribuir à Rússia os Jogos Olímpicos de Inverno em 2014.

Verdade que os Jogos Olímpicos sempre foram um primor de desvergonha política. Se deixarmos de lado o caso extremo de Berlim em 1936, quando Hitler já estava no poder, será preciso recordar Moscou em 1980? Ou até Pequim em 2008?

Não é preciso: as cidades e as datas falam por si. Mas talvez não seja inútil recordar, tal como lembra a "Economist" dessa semana, que os grandes torneios serão cada vez mais promovidos por regimes autoritários.

Com as democracias a entenderem melhor os custos ruinosos que Copas e Jogos Olímpicos trazem para o país –um livro recente de Andrew Zimbalist ("Circus Maximus"), sugerido pela revista, explica isso e eu falarei dele em breve– esses acontecimentos circenses serão cada vez mais operações de charme para legitimarem internacionalmente esses lamentáveis regimes.

A pergunta final é inevitável: se as altas instâncias do desporto mundial não têm vergonha na cara ao conferirem respeitabilidade a governos iliberais, não seria aconselhável que os países democráticos se recusassem a emprestar os seus atletas para que eles sejam figurantes de um filme de propaganda na melhor tradição de Leni Riefenstahl?

A minha resposta é afirmativa. Se Vladimir Putin não respeita a soberania dos países vizinhos nem as regras mais elementares de uma democracia pluralista, o mundo civilizado deveria deixar o czar Putin a brincar sozinho com os seus estádios.

P.S. "" Na semana retrasada escrevi sobre "O Sol É para Todos", um romance muito lido mas desprezado por certa crítica "highbrow". Alguns leitores, com igual entusiasmo pelo livro, perguntaram por outros títulos igualmente desconsiderados –mas valiosos.

A resposta é pessoal e, depois de Harper Lee, aqui ficam três nomes que não fazem parte do Cânone Ocidental (com maiúscula) –mas que ocupam a melhor estante do meu cânone doméstico: "Servidão Humana" de Somerset Maugham; "Beware of Pity" de Stefan Zweig; e, para ficarmos na lusa língua, os romances e as crônicas de José Cardoso Pires, lamentavelmente pouco conhecido pelo público brasileiro.


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