Folha de S. Paulo


Os pecadores

Converso com um amigo, professor de literatura, sobre "O Sol É para Todos" ("To Kill a Mockingbird"). Razão circunstancial: Harper Lee, depois de 50 anos de silêncio, promete publicar uma continuação do seu primeiro e único romance.

Pergunta: será que "O Sol É para Todos" merece lugar no panteão dos mestres?

Ou o sucesso do livro explica-se pela reclusão da autora –e, vá lá, pelo retrato da segregação racial que fazia sentido em 1960 mas não em 2015, quando a Casa Branca já não é um lugar exclusivo de brancos?

O meu amigo tem poucas dúvidas: "O Sol É para Todos" é uma espécie de "A Cabana do Pai Tomás" (1852), melhor escrito e talvez melhor pensado.

Mas a "estrutura narrativa" (adoro essa) é convencional, sobretudo para um século que experimentou todos os modernismos e pós-modernismos. Uma relíquia, no fundo, que deve ser lida com curiosidade histórica e pouco mais.

Escutei tudo como um discípulo aplicado e, no final, comentei apenas: "É impressionante como você só fala bosta".

Ele riu. Eu também. Mas posso defender a minha dama?

Li "O Sol É para Todos" muitos anos atrás e, usando a memória como recurso arqueológico, confesso que a parte "racial" da história foi o que menos me interessou.

Superficialmente falando, sim, existe um negro acusado de estuprar uma branca; e um advogado –Atticus Finch– que o defende numa comunidade hostil e num tribunal idem.

Mas o essencial do livro está na epígrafe que Harper Lee escolheu: uma frase de Charles Lamb (1775-1834) em que o escritor dizia que até os advogados já foram crianças um dia.

Precisamente. "O Sol É para Todos" não é apenas um livro sobre o ódio racial, como dezenas ou centenas de outros que se publicaram no século 20 norte-americano. É, mais importante que isso, um tratado sobre a incorruptibilidade da infância.

Essa virtude está expressa nos dois irmãos –a rebelde Scout, o não menos rebelde Jem– que acompanham a odisseia do negro acusado e os trabalhos do pai viúvo para defendê-lo.

O ódio racial é incompreensível para eles; a acusação que pende sobre o inocente Tom também; e a condenação de que ele é vítima, contra todas as evidências, é a prova definitiva de que os adultos são bichos que não se recomendam.

Harper Lee, com uma capacidade para escrever diálogos infinitamente superior ao amigo Truman Capote (1924-1984) –sobretudo quando usa o calão negro do Alabama na década de 1930–, entrega a narrativa a Scout: uma criança com 6 ou 7 anos que descreve os vizinhos e as suas bizarrias; o irmão Jem; o pai Atticus; a pequenez –física e mental– de Maycomb, o seu vilarejo; e, claro, o racismo que borbulha por aquelas bandas– sempre com uma mistura de humor e desencanto que deveria cobrir qualquer adulto de vergonha.

Como afirma Atticus a um dos filhos, as barbaridades sempre aconteceram, sempre irão acontecer –e só as crianças parecem chorar com isso.

Só as crianças entendem como é pecado matar uma ave canora: uma criatura inofensiva, que nada nos rouba e que apenas serve para nos servir.

Assim se entende por que motivo tenciono ler "Go Set a Watchman" (arrume um vigia), o novo livro prometido. Não entro nas polêmicas de saber se a obra foi autorizada pela autora –há versões para todos os gostos. Fico-me pelo essencial: a obra propriamente dita.

Segundo resumos, lidos aqui e ali, a narrativa reencontra Scout na idade adulta, em visita ao envelhecido pai Atticus. E eu quero saber o que foi feito daquela criança. Quero saber, no fundo, que vida ela teve depois de deixar Maycomb para mergulhar, enfim, nas águas profundas da idade adulta.

É provável que a inocência do passado tenha ficado no passado. Como é provável que aquilo que Scout condenava nos adultos –as ambiguidades, os medos, os fracassos– seja agora visto e descrito com algum conhecimento de causa.

Porque talvez essa seja a única certeza da maturidade e do envelhecimento: olharmos para trás e compreendermos que há várias formas de pecar contra inocentes.

Por vezes, o pecado maior é matar a criança que um dia fomos.


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