Folha de S. Paulo


Diário de Oxford - Capítulo 8

Os livros que já emprestei (e perdi) devem ser comparáveis aos livros que conservei. Difícil medir com rigor. Sei apenas que conto pelos dedos de uma mão as obras que tiveram ida e volta.

Durante uns tempos, ponderei inaugurar um esquema de controle: a pessoa levava o livro, assinava um documento –ou então, em alternativa, deixava qualquer coisa em troca. Um pedaço de carne talvez se ajustasse à natureza literária do negócio.

Felizmente, não é preciso escolher esses caminhos perversos: na Turl Street, no centro da cidade, encontrei uma loja que vende os carimbos que procurei toda a vida. Com palavras simples, eles permitem imprimir na obra a seguinte informação: "This book has been stolen from" ("esse livro foi roubado a"). Depois, é só acrescentar o nome do proprietário por baixo.

Nada disso garante a devolução do objecto? Verdade. Mas existem duas consolações que é importante não desprezar. A primeira é saber que, algures, em bibliotecas alheias, estarão dezenas, centenas, quem sabe milhares de confissões de um crime.

A segunda, mais importante ainda, é ter a certeza que o empréstimo não terá sucessores nem herdeiros: quem rouba, não passa o roubo para mais ninguém. O meu carimbo, que será distribuído democraticamente pelas várias páginas do livro, será uma espécie de contraceptivo bibliófilo para impedir a propagação da ladroagem.

João Pereira Coutinho/Folhapress
Carimbo com a informação
Carimbo com a informação "This book has been stolen from"

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E por falar em documentos para assinar: não seria boa ideia se homens e mulheres, momentos antes de qualquer intimidade, assinassem uma declaração onde atestassem o seu consentimento?

É uma sugestão. Tudo porque as autoridades inglesas, alarmadas com os abusos sexuais que existem por aqui, tencionam exigir ao cavalheiro uma prova cristalina de que a donzela, de facto, estava na posse das suas faculdades racionais e deu, com todas as letras, o seu abençoado "sim".

Entendo a preocupação. E, quando o cenário são abusos, mão pesada com os abusadores. Mas pergunto se uma exigência dessas, para além de juridicamente discutível (inversão do ônus da prova etc. etc.), não poderá desproteger muitos homens decentes de qualquer ameaça malévola, vingativa ou infundada.

Um documento assinado pelas partes talvez fosse mais seguro. Ou, então, a presença constante de uma testemunha que acompanharia todo o processo - dos mais inocentes preliminares ao descanso tabágico dos guerreiros.

Com a Europa flagelada pelo desemprego, testemunhas atentas e silenciosas talvez fossem o início de novas e promissoras carreiras.

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Tenho inveja de colegas académicos que são especialistas minuciosos em minuciosos assuntos. Eles não conhecem apenas a obra de John Locke, por exemplo. Eles sabem o número de páginas de cada livro; as datas de cada impressão e reimpressão; e, sobre o autor propriamente dito, nada escapa: dados biográficos; maleitas físicas; amores, amizades, inimizades; preferências gastronómicas; rotinas intestinais.

Não pertenço ao clube. Nunca pertenci. A culpa não é minha. Eu esforço-me. Mas uma curiosidade constante alimenta uma impermanência constante.

Tempos atrás, li uma entrevista ao actor John Malkovich sobre o seu filme "Variações de Casanova". E Malkovich deixava uma observação luminosa: é um erro confundir Casanova com um sedutor superficial, que coleccionava mulheres com o tédio dos contemporâneos.

Casanova coleccionava mulheres, sim, mas devotava a cada uma delas uma paixão igualmente única - pelo menos, até conhecer a próxima.

Assino por baixo: sobre o sexo feminino, nada a declarar. Sou rapaz comprometido e a minha senhora tem o hábito abusivo de ler estas colunas. Mas nas águas intelectuais, tudo me interessa com uma obsessão que pode durar horas - ou dias, ou meses. Raramente anos.

O filósofo Isaiah Berlin tinha nome para essas personalidades: "raposas". O que significa que Oxford é o mais perfeito galinheiro que existe.

De manhã, ainda na cama, vou lendo uma história da malícia no Ocidente (meu Deus, o que levará alguém a devotar anos de vida a esse tema arcano?).

Depois, nas caminhadas profiláticas, passo pelo Museu de História da Ciência e há uma palestra anunciada que está literalmente a anos-luz das minhas pastagens: "De onde veio a Lua?", lê-se no cartaz. E, depois, as datas e o nome: parece que o eminente Prof. Alex Halliday promete resolver o mistério.

Eu sorrio, continuo a caminhar, mas a pergunta não faz as malas para deixar a minha cabeça em paz. Sim, de onde veio a Lua, afinal?

Dou meia volta, regresso ao lugar do crime e anoto na agenda o dia da revelação. Definitivamente, é importante saber de onde veio a lua, sobretudo quando passamos os dias com a cabeça nela.

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E por falar em colegas de ofício: muitos deles olham para a Teoria Política com um esgar de desdém. Mergulhados em preocupações mais mensuráveis (comportamentos eleitorais, regimes e sistemas políticos etc. etc.), as meditações dos metafísicos parecem-lhes uma forma de diletantismo intelectual que não acrescenta um grama para a salvação do mundo.

Já deixei de os contraditar nos seus desprezos e vilanias. Até porque eles podem estar certos, o que não deixa de ser música para os meus ouvidos.

Seja como for, os meus ouvidos não se alegram apenas com o desprezo "científico" dos pares. Também festejam quando há encontros intelectuais nas mesmas águas. Hoje, ao almoço, sentei-me à mesa do refeitório do colégio com uma aluna que estuda a emigração dos samurais japoneses para os Estados Unidos no século 19.

Durante uma hora, lá a escutei sobre os diários que eles escreveram; as paixões que despertaram; e até às visitas à Broadway que fizeram, para espanto dos nativos.

Encantado com a narrativa, ainda lhe perguntei se ela nunca pensou em escrever um roteiro sobre o assunto e vender os direitos para Hollywood.

Ela meditou e depois respondeu: "Você tem o telefone do Jim Jarmush?"

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A entrega do Oscar está à porta e Frances Ryan, no "The Guardian", formula a questão que se impõe: devemos permitir que actores fisicamente normais representem figuras fisicamente limitadas?

A colunista dá como exemplo Eddie Redmayne como Stephen Hawking em "The Theory of Everything". Mas também cita Daniel Day-Lewis (paralisia cerebral em "My Left Foot") e Dustin Hoffman (autista em "Rain Man"). Para a autora, uma situação dessas pode ser duplamente gravosa.

Primeiro, porque exclui da indústria deficientes reais, que poderiam representar os mesmos papéis.

E, em segundo lugar, porque já ninguém vê com bons olhos a possibilidade de um actor branco pintar o rosto com graxa para representar um personagem negro, como sucedia na Hollywood das primeiras décadas. Não será a "cripping up" uma nova forma de "blacking up"?

Boas perguntas. Que, aliás, só pecam por modéstia. Se a ambição é incluir na indústria todos aqueles que podem trazer uma autenticidade igualitária para os projectos, Frances Ryan não deveria ficar por patologias motoras.

Pessoalmente, sempre me pareceu revoltante que Hollywood tenha recorrido a Anthony Hopkins para o papel de Hannibal Lecter quando existem nos presídios da América vários canibais autênticos que poderiam ter dado o seu contributo para uma refeição mais completa.

Claro que, no afã de incluir todo o mundo, podem surgir situações delicadas - filmes sobre super-heróis, por exemplo, empregando pessoas "reais" que acreditam que podem voar.
Nesses casos, não seria de excluir sérios atrasos na produção tendo em conta a necessidade de substituir continuamente os actores sempre que houvesse novos "takes" no topo de um arranha-céus.

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Um amigo costuma dizer que o mais importante no mundo é ter o passaporte em dia. Paranóico? Discordo. Realista. A lei é válida para qualquer um. Mas ela é especialmente válida para os judeus ingleses, que nos últimos tempos viram duplicar o número de agressões contra as suas comunidades.

Na BBC, o programa "Question Time" tentou explicar essa curiosa desvergonha. E convidou para o painel George Galloway, um político nativo que se tem notabilizado por suas proclamações odiosas contra Israel.

No programa, Galloway tentou fazer a separação entre a crítica ao governo israelense (legítima) e os ataques anti-semitas em solo britânico (ilegítimos).

Infelizmente, essa separação, que ele nem sempre respeita (conheço bem o bicho), é inexistente para a mentalidade dos fanáticos. Como alguém lembrou no programa, muitos dos judeus atacados nem sequer concordam com a política do governo israelense. Mas nem isso os salva do ódio anti-semita.

São judeus e, como sempre na história, isso já é crime que baste.


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