Folha de S. Paulo


Diário de Oxford - capítulo 6

Aqui em Oxford, sinto saudades do meu bairro lisboeta. Sobretudo dos gênios que lá vivem. Só na minha rua, são dois ou três, sempre com ares meditativos e profundos. O mundo não os conhece. Às vezes, nem os vizinhos têm essa honra.

Mas quando eles falam das respectivas "obras", uma pessoa pergunta onde está a Academia Sueca quando mais precisamos dela. No Brasil deve ser a mesma coisa: alguém comete uns versos e decide confessar o crime em edição de autor. E pronto: já ninguém segura a criatura.

Oxford é uma tristeza. Uma pessoa cruza-se com cientistas que alteraram a história da ciência. Ou com literatos que mudaram a nossa forma de usar a massa cinzenta. Mas há um traço comum nesta triste fauna: uma certa relutância, para não dizer embaraço, em falar das respectivas proezas. Como se a cura de uma doença ou um tratado filosófico para a próxima centúria fossem assuntos sem assunto, impróprios para festejos e outros onanismos.

Fosse eu um homem rico e importaria rapidamente alguns gênios lusófonos para animar esta sensaboria. Oxford precisa de aprender umas coisas em matéria de pose e verborreia.

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Lido no "Daily Telegraph": as cirurgias plásticas também contam no momento dos divórcios. Depois da divisão do patrimônio, dos filhos, eventualmente dos cães e dos gatos, parece que cresce o número de mulheres que, antes do ponto final, resolvem limpar as contas bancárias dos respectivos em implantes mamários e operações de lipoaspiração.

Mas não só. Nos termos do divórcio, começam a surgir cláusulas para que os maridos, juntamente com a pensão alimentícia para os filhos, também contribuam para a manutenção do Botox. Como explicar esta febre estética quando as coisas arrefecem na conjugalidade?

Especialistas vários falam em vingança: a donzela, antes da despedida, quer deixar ao homem uma imagem renovada - e a placa "Favor Não Tocar".

É uma hipótese. Mas uma triste hipótese: se as mulheres celebram a libertação de um homem pela submissão cirúrgica aos ideais de beleza que fazem a delícia dos homens - melhores seios, melhores bundas, nenhumas rugas - não sei quem é o verdadeiro escravo da situação.

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Sempre me impressionou em São Paulo as casas em forma de presídios: grades nas janelas, portões de ferro maciço, câmeras de vigilância e seguranças devidamente armados.

Em Oxford, a cantiga é outra: passamos pelas casas e todas, sem grandes variações, dispensam as cortinas e mostram as intimidades a estranhos. De tal forma que caminhar pelas ruas é atravessar uma sucessão infinda de salas onde é possível contemplar quem lá está, a fazer o quê, em que trajes (se os houver) e até em que consiste o jantar.

Criminalidade irrisória talvez explique um certo relaxamento (o crime mais comum em Oxford é o roubo de bicicletas). O facto de anoitecer às 4 da tarde também (qualquer raio de sol é recebido pelos nativos com as janelas literalmente abertas).

Mas existe uma característica dos ingleses que, apesar de paradoxal, encontra nos seus gestos cotidianos um equilíbrio perfeito: eles são reservados mas excêntricos.

Ou, para usar as palavras do grande Tom Stoppard, eles não se importam, não querem saber, não estão assim tão interessados com aquilo que os outros pensam deles. A ausência de cortinas é uma forma de mostrarem o respeito que têm pelo julgamento de terceiros. Nenhum.

Quando se fala da Inglaterra como a pátria das liberdades (desde a Magna Carta de 1215), também é dessa liberdade que estamos a falar.

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Tive dois acidentes rodoviários na vida. Nenhum deles grave. Ou quase. No segundo, houve hospitalização e cirurgia. Sobrevivi para contar.

Hoje, olhando para trás, consigo ver pela bruma do tempo os contornos de ambos. Ou, melhor dizendo, de ambas: nos dois acidentes, eram mulheres que dirigiam.

Uma coincidência, sem dúvida: longe de mim seguir os passos da Arábia Saudita e considerar mulheres que dirigem uma forma de terrorismo. Pelo contrário: as mulheres que conheço dirigem tão bem que eu prefiro nem viajar com elas. Para não estragar a concentração e a elegância do momento.

E quando, por engano, reparo que uma donzela está ao volante, salto do carro em andamento e fico em posição fetal, gemendo e suando na berma do asfalto. A culpa não é delas, repito. É minha. É da minha cabeça traumatizada e doente: no fundo, sou como um antigo soldado de guerra que se esconde debaixo da cama sempre que ouve fogo de artifício.

Mas há sinais de melhorias. E de culpas mais repartidas. Explico. Em Inglaterra, todo o mundo dirige pela esquerda. Uma bizarria? "Not really." Tempos atrás, um erudito local explicava-me pacientemente que bizarros somos nós, "europeus", que dirigimos pela direita por absurda imposição napoleônica. "Se reparar", disse ele, "nós dirigimos pela esquerda porque Napoleão não chegou às ilhas."

Nem às ilhas, nem à máquina a vapor, que espalhou o transporte ferroviário pelos quatro cantos do globo meio século depois de Napoleão. "É por isso que os trens circulam pela esquerda, não pela direita."

Claro que, histórias à parte, dirigir pela esquerda pode fazer grandes diferenças. Sobretudo quando cruzamos a estrada olhando para o lado errado.

Sim, foi mais estrondo que outra coisa. Mas eu, caído no asfalto, repeti em pensamento a pergunta que os pais ansiosos fazem quando ouvem as boas graças: "Será menina ou menino?"

Era menina. Mas, dessa vez, a culpa foi do menino.

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Li há tempos na "Literary Review" (que, a propósito, está excelente e sobreviveu bem à morte de Auberon Waugh) um comentário favorável ao filme "The Americanization of Emily", de Arthur Hiller, com James Garner e Julie Andrews (antes de perder a líbido). A curiosidade ficou e a Amazon fez o resto.

Abençoada Amazon. O filme, ancorado em plena Segunda Guerra Mundial, é tido pelos críticos como uma hilariante defesa da covardia: o comandante naval Charles Madison é um autodeclarado covarde, que considera as guerras uma imoralidade e defende a covardia como a única forma de acabar com elas.

Se todos fossem covardes, conclui Charles, ninguém pegava em armas e as mulheres, as mães, os filhos, os irmãos não teriam que chorar os seus mortos com a triste consolação de que eles foram "heróis". Charles Madison é um anti-herói. Não apenas por ser um covarde; mas, sobretudo, por desprezar o heroísmo com fé inabalável.

É esta "filosofia de vida" que atrai Emily, a típica mulher inglesa que também tem os seus "heróis" para chorar com imaculado sentido de dever, embora pressinta nas sentenças de Charles um fundo inquietante de verdade.

E quando ela lhe pergunta se ele não acredita em nada - um princípio, um código de honra - Charles responde-lhe na mesma frequência: ele não acredita em nenhum princípio transcendente; apenas na realidade tangível de que ama Emily e até seria capaz de dar a vida por ela.

Os críticos estão errados se pensam que o filme é uma apologia cínica da covardia. O mundo está cheio de "heróis" que são capazes de perseguir grandes princípios - mas que se revelam tristemente covardes para cultivarem os seus pequenos amores.

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Regresso a Portugal para as festividades. Véspera de Natal. Hábito recorrente: comprar presentes no último minuto. Desespero recorrente: não sou caso único.

Como um consumista alucinado, procura um lugar de estacionamento no shopping center. E então concluo que os portugueses foram definitivamente conquistados pelo Smart, aquele encantador carro minúsculo que ocupa os lugares dos carros maiúsculos.

Conclusão: as ilusões de óptica são permanentes. Vislumbro um espaço livre, acelero, piso no freio: é apenas um Smart. Novo espaço livre, nova aceleração, nova desilusão: é outro.

Não seria possível, por razões de saúde pública, proibir a circulação destes carros na quadra natalicia? Ou, em alternativa, obrigar os proprietários a estacionar sempre aos pares?

A minha úlcera agradece.

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Nunca fui poeta. Como dizia um humorista português, eu sempre fui mais prosa. Mesmo na adolescência, quando as hormonas exigiam rimas, eu optava pela narrativa.

Tudo isso pode mudar. Colegas ingleses introduziram-me à história e à técnica do "clerihew". O nome vem de Edmund Clerihew Bentley, que inventou pequenos poemas para matar o tempo antes que o tempo o matasse a ele.

O "clerihew" é composto por quatro singelos versos, em que o primeiro rima com o segundo e o terceiro com o quarto. O tema é essencialmente biográfico. O tom é paródico. O exercício é bizarro. A métrica é inestética.
Alguns "clerihews" ficaram na memória da nação. Um dos mais citados reza assim:

Sir Christopher Wren
Said, "I am going to dine with some men.
If anyone calls
Say I am designing St. Paul's."

Tomado pelo "furor poeticus", aproveito as festividades para dedicar aos leitores um "clerihew" da minha lavra. Com a devida vênia, e os devidos votos, aqui vai:

Os leitores desta Folha
Não têm escolha.
Leram a coluna do princípio ao fim
E exclamaram em coro: "Mas que coisa ruim!"


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