Folha de S. Paulo


Diário de Oxford - capítulo 5

Conversa-se muito em Oxford. E, quando o interlocutor é nativo, o cardápio é conhecido: apresentações; comentários sobre o estado do tempo; e quando a intimidade começa a ganhar forma e o nosso sotaque soa exótico, o interlocutor pergunta: "E você vem de onde?" (Um conselho: nunca esconda o seu sotaque de origem e jamais tente imitar o sotaque inglês; só os ingleses falam como ingleses).

Respondo: "Portugal." O outro abre um sorriso, imagina dias infindos de sol, bom vinho, comida mediterrânica –e conclui: "Ah, eu sempre adorei a Europa."

Em dez segundos, aqui está a prova definitiva de que a Inglaterra e a União Europeia são um casamento de conveniência, não de amor genuíno. Para os ingleses, a Europa sempre foi, e sempre será, aquele continente estrangeiro.

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Qual o nome predileto que os pais ingleses escolheram para as descendências em 2014? "John"? "Peter"? "Mary"?

Quase. "Mohammed" é a resposta. Uma resposta que deixou algumas almas a tremer. Não entendo por quê. Se as almas nacionalistas se preocupam com a "islamização" do espaço público britânico, talvez devessem reservar a trepidação para lugares mais apropriados. Como a cama, por exemplo, contribuindo para as estatísticas.

Até porque o problema do excesso de "Mohammeds" não é apenas cultural. Também é econômico. Uma figura destacada do Partido Conservador afirmou por aqui que o declínio dos pubs em Inglaterra, sobretudo em cidades como Nottingham, Leicester, Manchester ou Birmingham, deve-se à população muçulmana, que não frequenta esses espaços de vício e perdição. A matemática é fatal: onde existe excesso de abstêmios, os pubs fecham as portas.

Claro que os pubs, atentos à evolução demográfica do país, podiam renovar-se para a nova clientela. Proibindo o acesso a mulheres, com certeza. Ou servindo apenas bebidas sem álcool, em absoluta conformidade com os preceitos corânicos.

Como dizia um filho dileto desta pátria, a sobrevivência não é uma questão de força. É um imperativo de adaptação.

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Lindsay Lohan em entrevista ao "The Observer". Que nos diz a rebelde Lohan, que em tempos recentes era a grande musa dos cartéis colombianos?

Coisas sensatas: nos palcos de Londres, encontrou a disciplina que lhe faltava. Não duvido. Agora, só falta o talento.

Assisti a "Speed-the-Plow", peça de David Mamet no West End, com Lohan no papel da falsamente angelical Karen. Experiência atroz: voz, postura, intensidade dramática –Deus me perdoe. Só o embrulho consolava as vistas.

Mas, na entrevista, a "atriz" (espero um dia retirar as aspas) confessa: o melhor de estrelar uma peça de teatro é ter alguma coisa para fazer quando a noite chega. Ou, invertendo a premissa, é a ausência de ocupação que convida ao desastre.

É por estas e por outras que os nazistas não merecem perdão. "O trabalho liberta" é das grandes verdades da nossa existência. Sujar essa verdade com o cinismo desumano dos campos de concentração é um crime hermenêutico simplesmente inapagável.

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Entro no Ashmolean Museum para ver a exposição de William Blake. Em volta, um cenário conhecido: crianças ou adolescentes, com lapiseira e papel, a tomarem notas sobre as obras do mestre. Em Inglaterra, talvez por influência empirista, os alunos são como o bíblico Tomé: eles só acreditam, vendo.

Por isso não admira que um colégio do país tenha organizado uma visita de estudo a um jogo do Millwall Football Club para que os alunos de Sociologia pudessem observar, contatar e provavelmente anotar o comportamento das classes trabalhadoras. Se David Attenborough ficou célebre na observação de zebras e macacos, por que não observar os pobres no seu "habitat" preferido –o estádio de futebol?

A experiência de campo permite, segundo o jornal "The Times", estudar assuntos tão relevantes como "masculinidade", "racismo" e "mulheres que desafiam clichês de gênero".

Sobre este último quesito, aplausos e mais aplausos: nos jogos de futebol onde estive, o comportamento das mulheres não apenas desafiava os "clichés de gênero" como, mais interessante ainda, transformava qualquer macho na mais delicada donzela. A qualidade dos insultos femininos ao juiz da partida era uma rara combinação de violência, imaginação e desarmante boçalidade que nenhum homem seria capaz de imitar.

Infelizmente, a visita de estudo despertou protestos vários –de pais, professores e da torcida do Millwall Football Club.

Lamento. E não compreendo: se os turistas endinheirados gostam de visitar as favelas brasileiras como quem faz um safári no Quênia para fotografar a vida selvagem, pelo menos o colégio inglês tinha propósitos educacionais, e não apenas turísticos.

Só me resta esperar que estudiosos e cobaias possam chegar a um consenso porque é o progresso da ciência que está em causa.

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E por falar em Sociologia: em 2014, venderam-se no Reino Unido 1 milhão de discos de vinil. Mas os jornais informam mais: a venda de CDs diminuiu e a música em suporte digital aumentou. O que permite concluir que o consumo cultural tenderá a oscilar entre "materialistas" e "imaterialistas" (categorias inventadas mesmo agora por mim), ou seja, pessoal que gosta de meter as mãos na massa –e aqueles para quem a existência da massa chega e sobra.

Honestamente, confesso que estou na segunda equipa –na música e, ó blasfêmia!, nos livros. Mas entendo a necessidade de milhares de ingleses em voltar aos discos dos pais ou dos avós.

Com a informação e o lazer a dissiparem-se em "pixels", "nuvens" e outras etéreas moradas, o pequeno macaco que existe em nós ainda precisa de paus e pedregulhos para ter a noção da realidade.

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Leio nos jornais que existe mais solidão entre os jovens de 18 e 25 anos do que em pessoas acima dos 70. Ou, pelo menos, a juventude nativa sente o problema com maior dramatismo. Explicações?

Elas existem e estão contidas no mesmo estudo: a partir da meia-idade (50 anos, digamos), as pessoas sós, mesmo que estejam sós, estão também mais reconciliadas com a sua condição.

Faz sentido. Para repetir uma frase gasta, nascemos sós e morremos sós. E a vida, ao contrário do que pensa a cultura infantil em que estamos desgraçadamente mergulhados, não é um cortejo de animação permanente.

Entre os 18 e os 25 anos, a inescapável solidão dos seres humanos ainda é vista como um corpo temeroso e estranho, que convida à tristeza –ou, então, à asneira.

A partir dos 50, é uma parte natural da condição terrena que só assusta quem não deixou a adolescência no seu devido lugar.

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Gosto de ver passar na rua os alunos que acabaram de defender o seu doutorado em Oxford. Vêm elegantemente vestidos –"gown", laço, camisa branca. As famílias caminham dois passos atrás. Imagino que uma mesa de restaurante esteja reservada para os festejos.

Mas o novo "doutor" não tem cara de festejos. Nem sequer de alívio. "Melancolia" é o termo. Foram quatro anos de estudos intensos para a tese. E depois, em duas ou três horas, perante dois jurados (e sem a presença do supervisor, que não está na banca para o salvar), a odisseia termina na maior das banalidades. Como explicar isso?

Fácil: com os quatro anos que ficaram para trás. No primeiro ano, o aluno entra em Oxford com a patética noção da sua superioridade. Como é típico de intelectos pouco civilizados. A anedota termina depressa quando o tutor começa a esmagar o ego da criatura, a um ritmo semanal ou quinzenal, com a evidência da ignorância.

O aluno, por melhor que seja, pensava que sabia tudo sobre tudo. Surpresa: ele não sabe nada de nada. Pior ainda: ele não sabe pensar sobre nada com rigor e clareza. Em Oxford, o 1º ano é conhecido como o ano da humilhação. Ou do suicídio, tanto faz.

Depois, no 2º ano, vem o impensável: a humildade. É o momento em que se constroem os primeiros alicerces sólidos –como uma criança que aprende a gatinhar para depois caminhar (no 3º ano) e finalmente correr (no 4º).

Quando o aluno surge perante a banca, a soberba inicial ficou lá atrás. Mas a insegurança também. E se existe uma última esperança de que a defesa da tese será uma afirmação de virilidade intelectual, essa esperança também morre depressa. O júri está ali para discutir o trabalho, não para "julgar" e "punir". Uma conversa entre (quase) pares.

A "melancolia" que vejo no rosto destas crianças é um belo sinal de maturidade.


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