Folha de S. Paulo


Diário de Oxford - capítulo 4

Caminho pela Pusey Street e vejo um rapaz de 18 ou 19 anos que pedala na minha direção. Só que o rapaz não me vê: na calçada, passam duas donzelas da mesma idade. O intrépido ciclista acompanha o movimento de ambas, rodando a cabeça para trás, ao mesmo tempo que pedala em frente. Má combinação.

Como a rua tem um piso irregular, o que acontece a seguir é um dos mais extraordinários acidentes de bicicleta que já vi em Oxford –o rapaz, rebentado contra uma vitrine; e a bicicleta, deslizando pela estrada, até parar milagrosamente aos meus pés. As donzelas riem alto do infeliz e continuam rumo ao seu destino.

Eu, com solidariedade masculina, aproximo-me do rapaz. E ele, com a cara transformada em bife tártaro, balbucia um "I'm ok, Sir", "I'm ok, Sir", ao mesmo tempo que confirma com os dedos a integridade da dentadura.

Entrego-lhe a bicicleta, ajudo-o a levantar-se e então digo-lhe: ou pedalamos, ou contemplamos. As duas coisas é que não. Porque nós, homens, temos cérebros unidimensionais quando o assunto é feminino.

Ele sorri com a boca ensanguentada e continua: "Quite right, Sir", "Quite right, Sir".

A educação da juventude inglesa, quando existe, é uma coisa linda de se ver. E Pusey Street, daqui para a frente, terá para mim um significado fonético bastante literal.

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Noite de copos no "The Bear". O bar reclama o título de mais antigo da cidade (fundação: 1242). Talvez seja. Pelas paredes, vemos um número infindo de gravatas porque era tradição da casa usar a tesoura sempre que alguém entrava no espaço com a dita cuja.

Hoje, ainda há quem tente ressuscitar a tesoura, levando o apêndice pendurado ao pescoço. Para ser cortado e imortalizado.

Comigo, não. Larguei a gravata desde que cheguei a Oxford mas o hábito da Guinness permanece intacto. Sempre disse que a cerveja –peço desculpa: a "stout" deveria ser comida às colheradas. Exatamente como se fosse uma sopa.

Um dos convivas apoia a ideia. Até porque a Guinness era assim devorada nos hospitais da Irlanda, especialmente por senhoras depois do trabalho de parto.

Brindo a isso. Brindo a elas. E desconfio que uma boa forma de travar o declínio populacional na Europa seria prometer a cada mulher grávida refeições vitalícias de Guinness depois da respectiva contribuição demográfica.

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Não foi apenas a gravata que abandonei em Oxford. A lâmina de barbear também, o que significa que ostento agora uma barba respeitável, grisalha, assaz decadente.

Nenhum motivo em especial. Os dias são frios. Os dias são curtos. Com a lista de coisas para fazer –um livro; um ensaio; pesquisas várias sobre a Guinness– seria um desperdício gastar 15 minutos matinais a remover pilosidades.

O mesmo para a roupa: camisas de flanela e camisolas gola alta chegam para o serviço. Curiosamente, estas escolhas práticas deram lugar a intrigantes perguntas teóricas. Serei eu um "lumberssexual", perguntou-me a menina (romena) que serve os almoços no colégio?

Olhei a criatura com espanto. "Lumber-quê?" Ela explicou: antigamente, os homens eram "metrossexuais": tinham um cuidado com o corpo e a aparência que nem a Madame de Pompadour poderia rivalizar. Mas agora parece que a moda é outra: adeus, cremes; adeus, perfumes.

Os "lumberssexuais" têm um vago aspecto de lenhadores e se calhar até cheiram como eles. Uma forma de "resgataram" a sua masculinidade das garras dúbias da metrossexualidade.

Escutei tudo com curiosidade científica e depois de farejar o meu sovaco (tranquilo; tudo nos conformes), pensei com os meus botões - minto; camisolas de lã não têm botões: como são patéticos os homens do século 21.

"Metrossexuais", "lumberssexuais" –não importa se a criatura vem com pelos ou sem eles. O problema é outro: a preocupação constante em encontrar um "estilo" apenas denuncia a atroz insegurança dos homens em serem, simplesmente, homens.

Amanhã, regresso à lâmina de barbear.

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Bob Geldof voltou para gravar o tema "Do They Know It's Christmas Time", dessa vez para ajudar a combater o vírus do Ebola, e já há polêmica com a empreitada. Tudo porque Geldof decidiu mudar a letra da "música" para acomodar o novo espírito do projeto. Exemplos?

Versos do tipo "onde um beijo pode matar-te" ou "existe morte em cada lágrima", presentes na nova versão, não fizeram as delícias de vários profissionais, alguns deles envolvidos no Band Aid 30.

Os versos revelam "mau gosto" (a sério?) e, como sempre, toda a "música" é de um paternalismo arrepiante, a começar pelo título: imaginar que os africanos não sabem que é Natal por causa de uma doença é um atestado de imbecilidade passado a um continente inteiro, disseram os críticos.

Não pretendo defender Sir Bob, muito menos a "música" que ele relançou. Mas é estranho que o mundo do entretenimento só agora tenha acordado para o "paternalismo" insultuoso com que a "indústria da ajuda humanitária" trata África.

Essa ajuda parte sempre do pressuposto que os africanos são incapazes de governar os seus destinos –o que implica, em certos casos, remover governantes corruptos e sanguinários que vampirizam esses destinos.
A "música" de Sir Bob é um crime estético assinalável. Mas, em termos morais, há crimes muito mais sonoros.

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O Reino Unido já tinha o seu "Boxing Day" –aquele dia depois do Natal em que as lojas, com promoções generosas, são tomadas de assalto por hordas de alucinados, que às vezes pernoitam à porta das mesmas. Cheguei a conhecer vários. Cheguei a dar esmola a vários, confundido-os com meros pedintes.

Agora, uma importação americana (a "Black Friday") proporcionou espetáculo igual –e cenas de pancadaria iguais: compradores psicóticos que, depois de uma noite ao relento, se sovaram em várias lojas do país por causa de TVs plasma ou eletrodomésticos para o lar.

A polícia entrou em cena, prendeu quem pôde, mas pediu às lojas "planos de contingência" para lidar com os selvagens. Até para proteger a integridade das lojas.

Respeito a polícia. Mas talvez outra ideia fosse mais eficaz. Sejamos honestos: os teatros do West End não têm coisa que se veja (pelo menos, até Março, quando Emma Thomson enfrentará "Sweeney Todd"). O cinema não ata nem desata. E até a televisão inglesa já conheceu melhores dias.

Perante isto, por que não instalar algumas bancadas no interior dos grandes armazéns para que os interessados, munidos de bebida e pipocas, pudessem ver a loucura, a corrida e o pugilato das massas na disputa violenta por uma torradeira?

Eu pagava o ingresso. E, se todos pagassem, o vandalismo que as promoções arrastam praticamente pagava-se a si próprio.

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E por falar em cinema: assisto a "The Imitation Game", filme de Morten Tyldum que a crítica já considera o melhor filme do ano.

Opinião pessoal: não é o melhor do ano. É um filme da escola BBC, primoroso na reconstituição de época, com atores competentes e uma história conhecida: a forma como Alan Turing, o matemático de Bletchley Park, conseguiu decifrar os indecifráveis códigos dos nazistas através de um "computador" (quase) artesanal.

Turing acabaria posteriormente por ser perseguido pelas autoridades policiais por suas propinquidades (a homossexualidade era crime na Inglaterra até 1967) e castrado quimicamente como se fosse um repulsivo pedófilo. Aos 41, o herói da Segunda Guerra optaria pelo suicídio.

Benedict Cumberbatch recria Turing –o seu manifesto autismo e a sua manifesta genialidade– com talento q.b., ou seja, o talento que qualquer ator britânico, formado nas melhores escolas de Londres, empresta aos seus papéis (e que põe os parolos de Hollywood de joelhos).

Mas um pormenor do filme ganhou aos meus olhos uma relevância política fundamental: a "chave" para descodificar o código germânico estava na repetição, em todas as mensagens do Reich, do inevitável "Heil Hitler!". Isso permitiu iniciar um padrão de descodificação –e o resto, como se diz, é história.

A inteligência de Turing e sua equipa pode ter ajudado a furar o nevoeiro. Mas, em rigor, não foi Turing quem derrotou a besta alemã. Foi o fanatismo da besta que se denunciou (e destruiu) a si próprio.
Se as mensagens encriptadas não tivessem cedido a esse repulsivo e terminal "Heil Hitler!", talvez a história da Segunda Guerra tivesse sido outra.

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Dois irmãos são presos em Londres depois da regressarem da Síria e ficamos a saber, através da imprensa, que tipo de rotina eles tinham com os terroristas das Arábias.

É de arrepiar: acordavam às 4h30 e depois seguia-se um cardápio de orações, estudos islâmicos e 7 horas de treino físico e militar. Às 22h, estava tudo na cama (ou no caixão) e as luzes apagadas.

Uma pessoa lê estas coisas e depois pergunta se não foi um erro brutal ter abolido o serviço militar obrigatório na esmagadora maioria dos países ocidentais.

Entediados de morte com o conforto das nossas sociedades, esta juventude deseja apenas o tipo de disciplina que antigamente era possível encontrar nos nossos quartéis.

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Sou convidado para jogar "squash". Tempos atrás li algures que o exercício é fisicamente exigente e recordista desportivo em infartos e outras maleitas. Pelo sim, pelo não, levei o telefone das emergências no bolso e fui.

Gostei. Em 5 partidas, perdi as 5 –e só pontuei em uma delas por erro do adversário. Mas prometo não desistir.

Ele próprio, aliás, aconselhou-me a não o fazer. Com uma intrigante sugestão: "Você já pensou começar pelo badminton?"

Ainda não sei se ele falava a sério ou a brincar.


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