Folha de S. Paulo


Em defesa da amputação

Não uso relógio. Nunca usei. Admito que o objeto pode ser esteticamente interessante. Não é eticamente tolerável: a ideia de ter um contador do tempo agarrado ao corpo, registando todos os segundos, todos os minutos, todas as horas da minha existência —eis uma forma de prisão que não combina com as minhas paranoias libertárias. Eu não preciso de um relógio para saber que estou um segundo, um minuto, uma hora mais próximo da morte.

Mas o que dizer do Apple Watch, um novo brinquedo da empresa respectiva que promete tudo —saber as horas, acesso à internet, leitura de emails, medição dos sinais vitais, contagem de calorias ingeridas e provavelmente depilação integral?

Dizer que não é para mim é um divertido eufemismo. Mas a revista "Time", que dedica uma matéria ao assunto, vai ainda mais longe: como será o mundo quando as pessoas estiverem permanentemente on-line?

Os autores do artigo falam nos perigos conhecidos para a privacidade individual: quem rouba fotos de celebridades pode perfeitamente roubar o nosso ritmo cardíaco, as calorias que consumimos, o exercício que (não) fazemos —e, como já acontece com a informação que buscamos na internet, vender os resultados a quem se interesse por eles.

Como, imagino eu, seguradoras de planos de saúde que talvez não estejam dispostas a garantir proteção a gente sedentária, com colesterol previsivelmente elevado e uma tensão arterial fora dos eixos.

Mas o problema não se limita a questões de privacidade. Também existem as velhas questões de civilidade. A revista acerta ao falar do hábito, corrente e repulsivo, de estar com alguém à mesa e reparar que o alienado está com a cabeça enfiada no seu iPhone.

Aliás, não sei quantas vezes me passou pela cabeça pegar no brinquedo e jogá-lo pela janela fora. Ou então quebrá-lo na parede mais próxima.

Com um relógio será mais difícil —mas não impossível. É preciso considerar a hipótese de amputação —não do braço todo, só da mão e do pulso— para que o alienado repare que tem um ser humano na sua frente.

Por último, estar na rede é literalmente isso: estar capturado por dezenas de distrações infantis —e, talvez mais importante, por dezenas de paranoias.

Antigamente, a ida ao médico era uma decisão ponderada e justificada. O que significa que só hipocondríacos faziam dos hospitais as suas segundas casas.

A internet começou por mudar o cenário. Hoje, os médicos já não dão uma primeira opinião. Dão uma segunda, depois do Dr. Google ter descrito causas, sintomas e possíveis tratamentos.

Ter um relógio que nos mede constantemente os sinais vitais é habitar um estado de hipocondria permanente. Que, aliás, se alimenta a si próprio: a ansiedade de controlar os batimentos cardíacos, as calorias ingeridas ou o exercício físico em falta será mais danoso do que permitir que o corpo siga o seu curso natural.

Moral da história?

A minha relação com os relógios continuará a mesma. Mas admito que os meus amigos acabem por aderir à moda, mostrando a proeza em almoços ou jantares.

Não os recrimino. Mas, pelo sim, pelo não, prometo comparecer aos repastos com uma potente serra elétrica.


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