Folha de S. Paulo


Dançando no banheiro

Amigos e família andam preocupados com dois comportamentos meus recorrentes.

O primeiro é uma tendência quase inelutável para adormecer no sofá. De tal forma que muitos questionam se vale a pena eu ter um quarto com cama e colchão.

Respondo: "Que disparate!". Mas depois, em silêncio, reflicto. E desce sobre mim um momento de honestidade. Quando foi a última vez que eu dormi mesmo na cama?

Não sei dizer. O que sei é que adormeço no sofá, acordo de manhã –e depois, fresco como uma alface, estou pronto para o trabalho. O sofá está a arruinar as minhas costas mas a consolar a minha alma. Não consigo mais lutar contra esse vício e preciso urgentemente de ajuda especializada.

O segundo comportamento é mais problemático. Ando a rir demais. Corrijo. Conto uma piada e depois rio de forma desproporcionada.

Rio, não: vou rindo, a espasmos. A conversa já virou para outros assuntos. Mas a simples lembrança da piada faz com que eu regresse às gargalhadas –e aos pedidos de desculpa por ainda estar a rir. Como se a piada fosse uma piranha genial que se agarra ao meu corpo e o suga até não restar qualquer fôlego. Estarei a enlouquecer?

Não. Estou apenas a transformar-me no meu pai. Leio na revista "Veja" que existe um estudo britânico recente que aponta os 38 anos como o momento da vida de um homem em que nos transformamos no nosso pai. Se Deus quiser, terei 38 anos daqui a dois meses, dia 1º de junho (presentes podem ser enviados para a redacção desta Folha, por favor). Mas essa andropausa mimética já começou. Sinais?

O estudo não mente. Adormecer no sofá é um sinal. Rir das próprias piadas é outro. Mas o pior vem a seguir: somos como nossos pais quando, por exemplo, desenvolvemos um modo bizarro de dançar; ou então quando passamos cada vez mais tempo no banheiro.

Sobre a dança, nunca fui grande Fred Astaire. Mas também reparo que, em festas ou clubes, o pessoal em volta começa a ficar estupefacto com os meus movimentos. Alguns já chegaram a perguntar se eu sofria de epilepsia. Muitos ofereceram ajuda. Ofendido, abandono sempre a pista de cabeça baixa.

Sobre o banheiro, o estudo não é preciso: falamos de tempo literário ou tempo não-literário? Quando não existem livros, sou rápido como qualquer senhora pós-menopáusica. Trinta minutos bastam. Caprichar para quê?

Se existem livros, o caso muda de figura: pode ser uma manhã inteira. Ou uma tarde. Ou uma noite. Pior: sou capaz de olhar para a minha biblioteca e separar mentalmente os livros que li no banheiro e os livros que li –precisamente– no sofá.

Literatura policial –de Dashiell Hammett a Elmore Leonard– sempre foi no banheiro. Filosofia é no sofá. Mas todas as regras têm as suas excepções. Patricia Highsmith lê-se melhor no sofá. Os estóicos –as cartas de Séneca, as meditações de Marco Aurélio– são óptimos no banheiro.

A grande questão, portanto, está em saber se devo levar a sério as previsões do estudo. Que o mesmo é dizer: construir estantes junto ao vaso sanitário e mudar-me para lá de vez. Já faltou mais. Dois meses.

O ideal, aliás, seria receber os meus 38 anos e também levar o sofá para junto do chuveiro. Bem vistas as coisas, existem vantagens na solidão do espaço. Sempre podemos dançar à vontade. E ninguém estranha quando começamos a rir livremente das nossas melhores piadas.

*

Dicionário de português (2):

CARVALHO, J. Rentes de - A semana será de festa em Portugal. Passam 40 anos sobre o 25 de Abril, o golpe militar que terminou com a ditadura de Marcello Caetano.

Mas no momento de festa, inteiramente merecido, uma pergunta nunca deixou de me ocupar –e envergonhar: como foi possível a um país da Europa suportar a mais longa ditadura do século 20, quase meio século, até ao momento em que a putrefacção interna e a guerra colonial externa a fez desabar sob os tanques pacíficos dos capitães?

Uma boa resposta está em J. Rentes de Carvalho e no livro "Portugal, a Flor e a Foice" (Quetzal, 238 págs.). Sim, o nome talvez não seja conhecido entre o público brasileiro (uma lástima). Curiosamente, também não o era entre o público português: nascido em 1930, exilado na Holanda, autor de romances, diários, crónicas e prosa biográfica vária, Rentes de Carvalho, vivo e activo, é um dos melhores prosadores da língua lusa. Mas não custa perceber por que motivo um estilista como Rentes foi "persona non grata" entre a intelectualidade nativa, habitando o silêncio da indiferença durante grande parte da sua carreira.

O que ele escreve sobre o país queima como ferro em brasa e o livro citado, publicado na Holanda em 1975, não deixa pedra sobre a pedra com as suas meditações sobre a história de Portugal e os dias da revolução de Abril. Tese da obra?

A ditadura durou até à degenerescência porque, tirando uns fogachos de oposição aqui e ali, a "intelligentsia" nacional era óptima de letra mas péssima na acção. Digo "letra", no sentido de bazófia, e não "letras", no sentido de obras de resistência, porque se contam pelos dedos de uma mão os escritores portugueses que, para usar a expressão de Solzhenitsyn, assumiram a função de um "segundo governo" na tenaz oposição a Salazar.

Muitos evocavam a censura para tamanha mudez. Outros, o clima asfixiante em que o país vivia. Rentes de Carvalho pergunta, e pergunta bem, se isso é desculpa. Porque quem escreve, escreve sem desculpas. Nem que seja para a gaveta –e, como se viu pelos casos pungentes de Vasily Grossman (na União Soviética) ou Victor Klemperer (na Alemanha nazista), como testemunho para memória futura. Quando aconteceu o 25 de Abril, o país descobriu que as gavetas, afinal, estavam vazias.

A esse respeito, Rentes de Carvalho cita Graciliano Ramos, uma vítima de Getúlio, e as suas "Memórias do Cárcere":

"Certos escritores se desculpam de não haverem forjado coisas excelentes por falta de liberdade –talvez ingénuo recurso de justificar inépcia ou preguiça. Liberdade completa ninguém a desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a delegacia de ordem pública e social, mas nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer."

De resto, se a intelectualidade não se mexeu, por que não o fez o povo? Pelo simples motivo de que, na história pátria, o nobre povo sempre olhou para as lamentáveis elites com desdém e um irreprimível desejo de fuga. O Estado Novo não foi excepção.

Concordar ou discordar com todas as interpretações de Rentes de Carvalho é questão secundária. Porque a questão principal é existir um livro superiormente escrito que questiona a sacralidade das vacas –vivas ou mortas– que fazem parte da mitologia (ou será da farsa?) de um país. Eça de Queirós, um antecessor de Rentes, teria certamente brindado a ele.


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