Folha de S. Paulo


Seymour Hoffman em Lisboa

Se o ator Philip Seymour Hoffman morasse em Portugal, ele teria morrido com uma overdose de heroína? A pergunta pode parecer absurda. Mas ela foi formulada por um colega do "métier", Russell Brand, em artigo para o "Guardian".

Tese de Russell Brand: o grandioso Seymour Hoffman morreu como normalmente morrem os viciados no produto. Só. Escondido. Longe de amigos e familiares. Isso se deve ao fato de os Estados Unidos continuarem a criminalizar a posse e o consumo de drogas, fazendo do viciado um pária.

Exatamente o contrário do que acontece em Portugal, onde só o tráfico é punido criminalmente. A posse e o consumo deixaram de habitar o planeta criminal e são hoje uma infração administrativa, que termina muitas vezes com o tratamento do viciado.

Russell Brand tem razão e não tem razão. Mas, primeiro, convém ir aos fatos. O jurista norte-americano Glenn Greenwald, em estudo intitulado "Drug Decriminalization in Portugal" para o Cato Institute (um "think tank" conservador), olhou para o caso português. E gostou do que viu.

Em 2001, Portugal tornou-se o primeiro país da União Europeia a "descriminalizar" todas as drogas (heroína inclusa). Por outras palavras: recusando os extremismos que existem sobre a matéria —proibição absoluta ou liberalização absoluta— os lusos optaram pela "via media".

O consumo deixou de ser crime; passou a sofrer uma sanção administrativa (através de coimas, por exemplo). E o consumidor deixou de lotar os presídios; começou a ser encaminhado para o tratamento respectivo.

Isso permitiu aos governos poupar recursos na punição judicial do viciado, reforçando os mecanismos terapêuticos. Ao mesmo tempo, os viciados que temiam as consequências criminais começaram a olhar para o tratamento do vício com outra atitude. Resultados?

O consumo de drogas baixou na generalidade do país, ao contrário do que sucedeu nos outros parceiros da União Europeia. Doenças associadas ao vício —Aids, hepatite etc.— também baixaram. E, claro, o número de mortes por consumo de drogas seguiu a mesma tendência.

Último pormenor: Portugal não se transformou na Disneylândia do consumo europeu, desmentindo os cenários mais catastrofistas. A vida corre normalmente por aquelas bandas e ninguém pensa em reverter a legislação sobre a matéria.

O estudo de Glenn Greenwald sobre o sucesso português, disponível na internet, merece ser lido por qualquer governo interessado em enfrentar o problema das drogas no seu país.

Mas é preciso uma dose homérica de ingenuidade para restituir a vida a Philip Seymour Hoffman, imaginando o ator em Lisboa.

A legislação portuguesa tem limites. E esses limites começam quando existe uma vontade irreprimível do sujeito em promover a sua própria destruição. Os governos não salvam almas. Podem é salvar corpos, se houver oportunidade e vontade de os encontrar.

Porque, no fundo, o problema das drogas é anterior a qualquer lei. Ele começa, e às vezes acaba, nesse vazio imenso por onde se perdeu agora um dos maiores criadores do cinema do nosso tempo.

*

P.S. - O meu texto da semana passada, "Profissionais e amadores", animou diálogos hilariantes com alguns leitores. Leitores, vírgula: "cibercondríacos" que usam a internet para diagnosticar doenças próprias ou alheias.

Alguns partilharam relatos pessoais de como corrigiram os médicos, sugerindo diagnósticos alternativos (e de sucesso) com base em informação dispersa na rede.

E todos, ou quase, confessaram interesse em comprar os "gadgets" que prometem medir os comportamentos do corpo no futuro próximo. "É como usar a balança para vigiar os quilinhos em excesso", disse-me uma leitora paulistana.

Talvez seja, talvez não seja. Mas, aqui entre nós, não deixa de ser horripilante imaginar um mundo onde existirão dez ou 20 "balanças" em casa. E que serão depois experimentadas por milhares ou milhões de seres humanos, diariamente, como um ritual obsessivo-compulsivo, antes de saírem para o trabalho.

Mantenho a minha tese: às vezes, ignorância é felicidade.


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