Folha de S. Paulo


Temer jamais na Flip

Durante a minha mesa com a Valeria Luiselli na sexta-feira passada na Flip, o moderador recebeu perguntas do público por escrito como sempre acontece. No domingo, ao fim do festival, tive acesso a uma das perguntas que ele não teve tempo de nos repassar.

É comum nesse tipo de debate que surjam questões sobre o papel do escritor na sociedade. A pergunta recebida e não lida naquela sexta-feira é uma daquelas que contém em si sua resposta, além de ser importante exemplo histórico. Por isso a reproduzo.

O bilhete dizia: "Sua literatura é densa e surreal, baseada no tecido urbano tratando do social. Seu público –sobretudo aqui– é classe média alta. Flip patrocinada por Rede Globo, Itaú, BNDES. Qual o sentido do FORA TEMER? Você é tão maior e melhor do que isto."

Em 1975, o escritor João Antonio escreveu um ensaio chamado "Corpo-a-corpo com a vida". Nele, advoga por uma escrita comprometida e menos beletrista. Ele diz: "O caminho é claro e, também, por isso, difícil –sem grandes mistérios e escolas. Um corpo-a-corpo com a vida brasileira. Uma literatura que se rale nos fatos e não que rele neles. Nisso, a sua principal missão –ser a estratificação da vida de um povo e participar da melhoria e da modificação desse povo. Corpo-a-corpo. A briga é essa. Ou nenhuma."

Muito já se escreveu –e ainda se escreverá– sobre a proposta do João Antônio e suas críticas ao "distanciamento de uma literatura que reflita a vida brasileira." Como um romancista que pode situar tramas igualmente em Tóquio ou Copacabana e pensa seriamente em ter como protagonista do seu próximo livro um astronauta, acredito que meus romances aproximem-se do corpo-a-corpo proposto pelo João Antônio de diferentes maneiras –o último, lançado na Flip deste ano, relaciona-se bastante.

Não que a selvageria libertária do criador precise sempre corresponder a sua performance pública, ainda que ambas estejam sempre condicionadas pelas contradições históricas do seu tempo e lugar. No entanto, quando alguém contrapõe posicionamento político à literatura que o autor produz, demonstra não apenas uma leitura bastante ingênua da sua obra (um "aparato bélico" que sempre responde a uma situação social) mas também relega, no caso específico da Flip, o escritor ao papel de reles animador de festinha literária.

"Você é tão maior e melhor do que isto". Não sou. Ser "maior e melhor do que isto" me faria tão microscopicamente invisível que eu não conseguiria me enxergar no espelho de manhã. Estamos vivos, aparentemente, vivos e acordados. A literatura parte do enfrentamento com a vida –considero a natureza desse enfrentamento tão múltipla quanto a experiência humana.

E hoje, entre as várias coisas que devemos enfrentar, há este governo.


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