Folha de S. Paulo


Divisor de águas

Uma fratura profunda começou a abrir no corpo psicossocial brasileiro desde os protestos de junho de 2013 - liberação de energia ainda não totalmente compreendida e muito menos capitalizada. É cedo demais para precisar a extensão política do sismo, mas como o foco desta tentativa será o indivíduo, me arrisco a abrir a tampa do liquidificador ligado.

A falha não começa com uma ruptura total, talvez um pequeno ponto trincado num vidro que aos poucos vai se abrindo em teias riscadas até enxergarmos nosso reflexo numa vitrine craquelada. Estamos surfando - ou sendo engolidos - por este fractal desde então. As rachaduras não pararam de crescer.

A imagem não é apenas metáfora: vitrines quebradas foram uma das grandes protagonistas da cena nacional desde então. Através de uma cobertura jornalística disposta, junto ao governo federal, estadual e a PM, a criminalizar a maioria dos protestos, era mais fácil encontrá-las, em destaque e contabilizadas na imprensa, que o números de feridos ou mesmo imagens dos seres humanos vandalizados pela polícia. Desde então, o comportamento das tropas variou conforme a antipatia da turba aos oligarcas –fantasiados sob governos supostamente de esquerda ou de direita, tanto faz, mandam bater igual. Aprendemos: marchar ao lado da Fiesp (selfie com o caveirão israelense) é diferente que marchar contra a Fifa, máfias de ônibus ou Belo Monte (gás, tiro e cacetada).

No dia seguinte, manifestantes em casa ou no hospital, e a cena recorrente de tapumes a cobrir fachadas destruídas - antes das feridas cicatrizadas, os bancos terão vidros novos, como se nada houvesse acontecido. Mas nossa imagem fragmentada não terá a mesma chance de reconstrução. Somos um quebra-cabeça que não monta mais.

Aqui sugiro um corte generacional: o impacto desse tremor de terra será mais profundo para quem nasceu nas décadas de 70 e 80. Os atos dessa geração nos últimos três anos irão definir seus caminhos para os próximos trinta.

Como se de junho de 2013 até hoje o tempo tivesse sido esticado, corda de um arco que nos impulsionará como flecha até os anos 2040, em direção determinada pelas nossas últimas escolhas. A forma como negociamos a tensão entre convicções pessoais e relações laborais e afetivas - até onde transigimos ou traçamos fronteiras - irá definir nossas carreiras, amizades e casamentos nas próximas décadas. E também como a história se lembrará de nós.

Como amo a assertividade patafísica da astrologia –e acredito plenamente nela em dias ímpares– recorro aos astros, que por sorte sustentam com perfeição minha nada modesta teoria. A sequência transformadora de eclipses desde o segundo semestre de 2013 foi um fenômeno sem precedentes que envolveu quadratura bombástica entre Urano e Plutão, dois destruidores revolucionários criativos, coincidindo com o trânsito de Saturno em Escorpião, expondo a sujeira, rompendo estruturas. O último eclipse dessa série será agora no dia 23 de março. Em 30 anos, Saturno irá retornar à posição onde estava em 2013, fechando um ciclo de amadurecimento e consolidação. (Obrigado, Maína Mello).

O momento merece de todos nós senso histórico. Vale a tentativa de saltar para fora da foto, respirar fundo, e se olhar: você ainda estará nela em 2043. Ou 2046. É uma questão política, mas não é só política –ou é a política em tudo. O próprio lugar ocupado por cada um de nós no mundo está em questão. E o silêncio não parece ser alternativa ao bombardeio, quem cala hoje tem a mão suja, será lembrado por isso. Acabou o conforto: o tempo esticado, em cordas graves prestes a rebentar. Suas respostas de agora não poderão ser rasuradas no futuro. Cada uma delas, um caminho. Não tem volta.


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