Folha de S. Paulo


A pianista na corda bamba

Maria João Pires senta diante do piano e aguarda que o maestro italiano Riccardo Chailly comece a reger a orquestra. Quando começam a soar as cordas do Allegro do Concerto nº 20 de Mozart em ré menor, um crescendo dramático e mercurial, a sala de concertos lotada em Amsterdam percebe algo estranho acontecer com ela.

Ela abaixa o rosto, engole em seco, solta um riso nervoso. Depois, num gesto teatral, leva a mão à testa e encosta o cotovelo no piano. Ergue as sobrancelhas, olha para o regente buscando alguma cumplicidade, e diz a Chailly que esse não era o concerto que ela tinha ensaiado. E que não trouxe essa partitura —ela, na verdade, estava preparada para tocar o Concerto nº 21 em dó maior.

O maestro segue conduzindo com surpreendente nonchalance e responde que ela tocou esse concerto ano passado, que ela consegue. A música não pára. Com as pupilas dilatadas, Maria João busca algo onde sustentar-se entre a indiferença da audiência e os arcos das cordas —as setas em movimento sincopado parecem todas apontar para ela. Finalmente, fecha os olhos, mortificada. Afasta de si o piano com o braço direito estendido sobre o tampo. Seu desespero amplifica o tom sombrio da peça de Mozart num ataque de pânico, sua taquicardia nos atravessa como uma flecha.

As primeiras filas do teatro então a ouvem dizer, sua voz um fiapo trêmulo: eu posso tentar. E o pânico transforma-se num tipo sobrenatural de resignação quando ela encolhe os ombros e as linhas do seu rosto parecem esvaziar-se. Há muito mais ar saindo que entrando no seu corpo pequeno. Ela abre a porta de uma sala dentro de si onde estão, em ordem e com os devidos intervalos de tempo, as dezenas de milhares de notas que compõem a peça. E toca tudo até o final, sem erros, com a mesma intensidade emocional, equilíbrio entre passionalidade e fluidez, encontrada em gravações anteriores do mesmo concerto.

Costumo recorrer a essas imagens frequentemente. São como um farol. Elas fazem parte de um documentário holandês de 1998 sobre o maestro Riccardo Chailly tocando Mahler com a mesma orquestra, a do Concertgebouw de Amsterdam. (No Youtube, o trecho aqui.) A performance de equilibrista de Maria João Pires foi num ensaio aberto, na hora do almoço, para um recital a ser realizado na mesma noite. Ela e Chailly já haviam gravado o mesmo concerto, mas nada disso faz o acontecido menos extraordinário.

Para muitos, a portuguesa que naturalizou-se brasileira, morou na Bahia nos anos 2000 e hoje vive na Bélgica, é a maior pianista viva, maior até que Martha Argerich. Indiferente a esse tipo de ranking, ganhou o prêmio Gramophone no ano passado, o maior prêmio da música clássica, pela sua interpretação dos concertos nº 3 e nº 4 de Beethoven —foi ao vencer o concurso internacional do bicentenário do compositor alemão, em 1970, aos 23 anos, que tornou-se reconhecida internacionalmente. Na Europa, suas versões de Schubert, Chopin, Beethoven e Mozart pela Deutsche Grammophon aliaram sucesso de crítica e vendas e, há pelo menos quarenta anos, Maria João Pires atua mas melhores salas de concerto do mundo. Para nossa sorte, costuma nos prestigiar por aqui.

Uma vida inteira está contida na expressão solitária de Maria João Pires entre o momento em que descobre estar perdida até quando decide dar o primeiro passo sobre a corda no precipício. E começar, sempre começar, a cada nota sem saber se chegará até o final. Assim vivemos, subindo uma escadaria suspensa sobre o vazio, o próximo degrau uma incógnita. A amplitude das expressões do rosto da pianista traduz não apenas a honestidade e transparência de uma das grandes artistas do nosso tempo, mas algo maior: a solidão trágica que nos faz demasiadamente humanos —e, quando vivemos a vertigem do desconhecido e da paixão, tão próximos do divino.


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