Folha de S. Paulo


Solidão no País Basco

Sitiada por montanhas e riscada pela artéria pastosa e castanha do Rio Nervión, Bilbao teve fama de suja e cinzenta até que célebres reformas urbanas lhe oferecessem outras cores - e um fluxo permanente de turistas. Os principais ícones dessa transformação a partir dos anos 90 são um museu Guggenheim assinado pelo Frank Gehry, o metrô com arquitetura do Norman Foster, e, em obras mais recentes, a torre da Iberdrola de César Pelli e o centro cultural Azkuna Zentroa, um centenário armazém de vinhos remodelado pelo Philippe Starck.

No topo da construção há uma piscina, e do átrio sinistro e escuro, como é gosto do francês, podemos ver os pés das senhoras fazendo hidro-ginástica através de placas de vidro no teto. De baixo, parecem sapos deslizando num aquário.

É evidente que não poderia faltar uma ponte estaiada do Calatrava, e lá está a Zubizuri. Numa cidade onde chove o ano inteiro, o arquiteto tão caro ao Balneário de São Sebastião projetou um deslizante piso de azulejos de vidro numa via de pedestres - a rampa precisou de um tapete improvisado para que transeuntes parassem de quebrar ossos.

Por sorte, Bilbao continua uma cidade bastante estranha e, em certos bairros, francamente desagradável. Chegar de trem ou ônibus revela um agregado penoso de fábricas, depósitos e conjuntos habitacionais. As novas construções com pedigree não a fizeram perder seu misticismo nacionalista e um ancestral caráter fechado - certa austeridade pastoril traduzida ao longo dos séculos em extração de ferro e indústria pesada. O áspero som do euskera, que não pertence ao tronco linguístico indo-europeu e faz húngaro parecer simpático, combina perfeitamente com uma cultura cujo esporte mais tradicional é o harrijasotzaile, levantamento de pedras.

O clichê confirma-se: é uma solidão extraordinária a do forasteiro no País Basco. Ultra-ortodoxos moradores de Mea Shearim, em Jerusalém, ou velhinhas centenárias de Asakusa, em Tóquio, podem ser criaturas mais receptivas.

Como em Pamplona, não é incomum que bares tenham portas fechadas ou vidros fumê. Caso você se aventure ao desconhecido e seja um rapaz, espere que os amigos da única mulher presente no estabelecimento lhe empurrem com o ombro e façam barreirinhas entre vocês dois, mesmo sem que você tenha demostrado qualquer interesse pela donzela.

Não por acaso, o acesso de jogadores estrangeiros também é vetado no Atlético de Bilbao. O clube apenas contrata atletas nascidos no País Basco, caso único no futebol europeu. Mesmo assim, junto ao Barça e ao Real Madrid, o Atlético faz parte do trio que jamais caiu de divisão no campeonato nacional, tendo vencido La Liga oito vezes - a cidade está cheia de bandeiras do time e do Euskadi, como chamam seu território os bascos.

Noite gélida e chuvosa, cruzo a ponte entre o Casco Viejo e San Francisco, um bairro de imigrantes que lembra uma versão desidratada e íngreme de Lavapiés, em Madrid. Procuro um bar aberto num domingo, as meias molhadas de chuva. Raskólnikov queimando livros no inverno por falta de lenha. Subo, desço ladeiras, desisto algumas vezes. Em certas madrugadas, a solidão de procurar um bar aberto no País Basco só não é maior do que a de encontrá-lo.


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