Folha de S. Paulo


A lenta na Zero Horas

Uma tradição infelizmente há muito abandonada no Brasil é o costume de dançar música lenta em festas, salões e discotecas. Da valsa vienense à balada oitentista passando por bailes de orquestra, a circunstância de dançar agarradinho sob compassos suaves foi, para boa parte do nosso povo, a primeira vez em que nos vimos nos braços de alguém.

"A hora da lenta", dizíamos, quando o DJ interrompia um set de hits frenéticos para enfileirar uma sequencia de baladas. Inicialmente, a pista abria-se num vazio medroso. As meninas e os meninos plantavam-se contra paredes opostas no salão do playground do prédio ou da matinê. Depois, era vencer a timidez e chamar a menina pra dançar. Priápico frenesi sob solos de saxofone. A descoberta da nuca e do cheiro dos cabelos da mulher colados na pele escorrendo suor. Isso durava meia hora até que luzes coloridas voltavam a piscar e os casais descolavam-se como tentáculos saciados, voltando a dançar aquilo que chamávamos música rápida.

Já na metade dos anos 90, a lógica das festas excluiu a hora da lenta e isso nunca mais voltou. Mas por sorte existe Cabo Verde, a Ilha de Santiago e sua capital, a Cidade da Praia. Ali, numa rua erma de galpões industriais na Achada Grande, há uma boate-fortaleza cuja entrada é uma jaula dessas comuns à entrada de prisões ou fronteiras bastante guarnecidas. Após pagar 500 escudos cabo-verdianos por uma pulseira de papel e atravessar policiais e seguranças, entramos na célebre Discoteca Zero Horas, uma tradição local.

A boate tem cinco níveis de mezaninos, parte do teto aberto às estrelas e uma cabine suspensa de comandante-DJ na proa do barco com arquivos de biblioteca e algo de estação de rádio de ondas curtas. Ouvimos zouk eletrônico e kizomba em cadências suaves, apesar do grave rimombando pelas canelas. Por todas as partes, vemos casais entrelaçados em diferentes gradações de rebolado e amasso. Se isso aqui não for o xangri-lá ou a meca da música lenta é pelo menos um dos seus principais templos no mundo.

Bebo minhas cervejinhas Strela tentando disfarçar a comoção. Observo um foco de luz que ilumina certo casal no nível inferior do teatro. Ela tem uma pele de vestido verde e cabelo black power, ele usa moletom e tênis branco, colar e pulseiras douradas. Movimentam-se lentamente, sobre plumas, o que não lhes impede de dobrar os joelhos, descendo na maciota, sem pesar.

De repente, o homem envolve a mulher um pouco mais com o braço direito e os dois executam o passo que transforma o encontro dos seus quadris no aleph da pista, para onde tudo converge: dançam cada vez mais lentamente, apenas a respiração dos corpos um contra o outro, até que congelam-se, abraçados. E ficam ali, imóveis, até a próxima, protegidos por uma nuvem de fumaça e luz negra.

Ao fim da lenta na Zero Horas em Cabo Verde, essas estátuas podem olhar para onde quiserem —jamais se transformarão em sal.


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