Folha de S. Paulo


Uma carta para a Chloé

Vejo a saída de emergência a todo o momento no canto dos olhos. A depender do equilíbrio dos meus neurotransmissores, desistir deste mundo sempre me parecerá uma ideia sensata. Convidar alguém para habitá-lo, ao contrário, um ato irresponsável - para não dizer de insanidade total. No entanto, tenho amigos que ainda levam alguma fé na existência dos homens sobre a Terra. Eles seguem povoando este planeta irreconciliável.

Isto é para dizer que no dia 4 de dezembro, dia de Iansã, meu afilhado Arthur ganhou uma irmã chamada Chloé. Eu ainda não a conheço, mas já a amo sem volta.

Mas o que dizer a uma criança que nasceu no meio da badtrip que é dezembro de 2015? Como descrever a ela este pesadelo distópico de mau gosto?

No Brasil, militares chacinam a juventude negra e espancam estudantes nas ruas enquanto os maiores crimes ambientais da nossa História, Mariana e Belo Monte, continuam impunes e nossa República segue seu interminável baile de fisiologismo e corrupção. Nos Estados Unidos e na Europa, políticos desavergonhadamente fascistas ganham espaço e voto - o partido de extrema-direita Frente Nacional foi o mais votado da França nas eleições regionais, o palhaço racista Donald Trump é o primeiro na disputa entre os republicanos. No Oriente Médio, as potências mundiais caem na armadilha de fundamentalistas religiosos dementes para atolar-se numa guerra que tem tudo para ser o Vietnã da nossa geração, só que mais mortal, mais lucrativa para a indústria, e com atentados sangrentos na esquina de casa. Enquanto isso, a censura, governamental ou corporativa, cala vozes em todo o mundo. Ativistas, ambientalistas e jornalistas são censurados, demitidos ou assassinados em países como o nosso. E artistas são condenados à morte por apostasia na Arábia Saudita - o Estado Islâmico radical, misógino e assassino que o ocidente tolera. E se o nome do poeta Ashraf Fayadh chega às páginas dos jornais, tantos outros morrem incógnitos.

Poderia eu continuar por páginas e páginas falando de outras tragédias - e também dos poetas que morrem antes mesmo de pisar o cadafalso, de desgosto num mundo onde não há espaço para eles, pois é um mundo governado e feito sob medida para cretinos filhos da puta, Chloé, e imagino agora que seus pais vão precisar esperar uns quinze anos para te entregar esta carta - e só este pensamento já me oferece alguma luz entre as nuvens carregadas: você daqui a quinze anos, com quinze anos, lendo isso aqui em alguma tela de computador ou seja lá o que carregar um texto em 2030.

No último final de semana, dois dias depois de você nascer, participei de uma conversa dentro de uma escola estadual ocupada por estudantes que tem a idade que você tem hoje. Por ocupada, entenda que ocupada em protesto contra o fechamento de 93 escolas proposto pelo governador do estado. E veja você: o governador que sobreviveu quase sem arranhões e nenhum recuo a uma crise de desabastecimento de água sem precedentes provocada pela sua própria incompetência, à chacinas e execuções cometidas pela polícia sob seu comando, à descoberta de casos de corrupção sob sua administração, o governador-teflon não conseguiu sair incólume à queda de braço com os estudantes. Enquanto eu escrevo isso, a guerra ainda não está ganha, mas o pulha em queda de popularidade recuou ao lado de sua tropa de conspiradores e cães de guarda.

Meninas de quinze anos como você deram um baile político no governo do estado, nos seus secretários e em todo o arsenal midiático controlado por eles. Elas já tinham se articulado semanas antes, em movimentos pelos direitos da mulher que saíram da internet e ganharam às ruas. E talvez esse movimento de articulação horizontal entre mulheres de diferentes estados e estudantes de diferentes escolas lutando juntos por direitos e atuando pela coisa pública seja o prenúncio de um modelo de representação mais direta, uma democracia mais participativa e menos patrimonialista.

O futuro, se existe, está nas mãos dos estudantes e, especialmente, de mulheres como você: a melhor coisa que aconteceu em 2015 e nos anos que virão. Que os seus ventos de Iansã nos arranquem desse atoleiro, Chloé.


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