Folha de S. Paulo


Nanda Félix: Machismos miúdos (#AgoraÉQueSãoElas)

"Dentre os sentidos oferecidos para a palavra "humanidade" pelo dicionário, como "mundo" e "seres humanos", encontra-se "conjunto de homens". Conjunto de homens, sem menção às mulheres. Na ideia imediata que criamos para humanidade, a mulher simplesmente não está incluída. Tal marginalização se confirma em esferas enormes, como a PL5069, de Eduardo Cunha, mas também em esferas miúdas, dentro da nossa casa e até mesmo do nosso corpo.

Quando ouvi do médico que estava grávida de um menino, chorei copiosamente e, perguntada pelo pai do meu filho sobre porque estava chorando, não soube responder. Hoje entendo que, entre outras coisas, existe em mim um medo enorme de criar um machista.

Mesmo tendo plena consciência de que não sou a única responsável pela criação do meu filho, me deparo constantemente com meus próprios padrões estabelecidos, e a dificuldade diária que é ser feminista. Em um mundo em que a hierarquia patriarcal é tão absoluta que às vezes parece natural, é preciso estar atento a cada passo de uma criança.

É fácil cair na armadilha e ser cooptada por esse machismo miúdo. Está no homem que "ajuda" a cuidar do filho porque ele trabalha muito - como se cuidar de uma criança não fosse um trabalho importante, e como se os anseios profissionais da mulher fossem menores -, no namorado que acha aquela saia curta (e que diz isso pela nossa segurança, afinal a culpa do assédio também é da assediada), no parceiro que rouba uma ideia sua e afirma que isso prova o quanto ele te admira, no marido que diz que você não sabe o que é machismo, afinal, na época da sua avó ela nem trabalhar podia, na mãe que impõe mais responsabilidades sobre a filha mulher, na sua voz calada por um "você está de TPM?", e até em nós mesmas, que aceitamos tudo sem estranhar.

Por mais que me esforce para não impor regras que separem os gêneros na minha casa, me dei conta que meu filho não tem uma boneca - enquanto minha afilhada, com somente um ano ganhou de aniversário um neném de plástico. "Tão pequena e já tão maternal" foi o que disseram. Ninguém deu uma boneca de presente para o meu filho - nem eu mesma.

Não sei qual seria a sua reação ao ganhar um neném de brinquedo, mas já o vi feliz empurrando um carrinho de boneca, ainda alheio a qualquer fomento cultural de um machismo por vir. Foi sem surpresa que notei, em seguida, uma menina de três anos lhe dizendo que ele não podia brincar de boneca, por ser "de menina". Não sei o que é mais espantoso: a certeza de que esse tipo de repreensão acontece diariamente, ou - pior - a hipótese de que ela naturaliza essa separação de gênero porque na sua casa só quem "brinca de boneca" ou "de casinha" é sua mãe ou sua babá.

Em que momento de seus 3 anos de vida ela foi cooptada pelo machismo nosso de cada dia?

Hoje faço das tarefas de casa parte do jogo. Varrer virou a diversão favorita do meu filho, assim como cozinhar - e isso pra mim é também um esforço diário, visto que sempre tive outra mulher, mais pobre e mais negra, para cuidar das minhas coisas.

Toda vez que olho para meu filho tenho mais certeza da importância da onda feminista que nos invade hoje. Sempre que o vejo cuidando da neném da amiga sou otimista. Mas é preciso estar atenta e forte, pois a armadilha mora dentro de todxs nós. Não podemos, no futuro, continuar tendo que discutir questões do século retrasado."

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Aqui a campanha #Agoraéquesãoelas vai ser um pouco mais longa: o mês inteiro de novembro. A primeira semana é da Fernanda Félix, cujo texto é este acima, a segunda será da Stepanhie Ribeiro, a terceira da Joana Couto e a quarta ainda está em aberto. Todas elas deveriam ter espaço e voz na imprensa brasileira. É sinal de atraso que tenham que ocupá-lo via este escritor e por uma limitada janela de tempo.

Repito: não há nada de generoso, cavalheiresco ou mesmo digno de mérito nesse gesto. Ele é microscópico frente aos muitos privilégios que temos por ser homens, um deles o de nos ser facilitado o espaço na imprensa. Que a campanha sirva para gerar uma verdadeira reflexão nas redações sobre a baixa proporção de mulheres com colunas semanais nos grandes jornais brasileiros.


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