Folha de S. Paulo


A orquestra desafina

O RMS Titanic chocou-se com um iceberg às 23h40 do dia 14 de abril de 1912 e naufragou na madrugada seguinte. Até pouco depois de 2h, quando começou a afundar mais rapidamente no Atlântico Norte, a orquestra de oito músicos vestindo salva-vidas mandou ver em animados ragtimes e valsas. Regidos pelo maestro Wallace Hartley, eles tocaram sem parar até que o deck se inclinasse como uma tobogã e a estrutura do navio finalmente rompesse. Nenhum dos músicos sobreviveu.

Sempre vi algum paralelo entre esse episódio e a mescla de euforia e decadentismo que acompanha o Rio de Janeiro desde sua fundação. Afinal, quando a cidade ainda era a principal pérola do Império Português e vivíamos sob ameaças internas e externas, já evoluíamos sob o signo do caos para requebrar e sambar pra valer. Nosso hedonismo sempre foi de guerra, naufrágio e dissolução. A eminência do desastre nunca nos deixou melancólicos ou estragou qualquer festa por aqui, da corte ao quilombo. Muito pelo contrário: é por ela que rebolamos até o meio-fio ao som do tamborzão de canhões e fuzis, entupimos as cavidades com álcool e psicotrópicos e gastamos até o último centavo do cartão de crédito e do cheque especial. O lance é ficar doidão pra não ficar doidão.

O que importa a degradação moral e do organismo e a extorsão dos juros para alguém que, se não vai morrer no dia seguinte, sente que pode? Festejar como se não houvesse amanhã por aqui não é figura de linguagem. Até porque, para muitos, amanhã não haverá. A qualquer momento a cidade pode nos ceifar –ela mesma erguida sobre o espírito do medo e da incerteza. E assim aumentamos o som pra silenciar o som os tiros lá fora.

Mas talvez algo diferente comece a acontecer. É outubro de 2015, estou no Rio de Janeiro e sinto que nossa orquestra começou a desafinar.

Os bares e restaurantes, se ainda não esvaziaram por completo, surpreendem pela timidez de seus comensais. O desencanto deixou de ser assunto: está no rosto das pessoas falando baixinho. O carioca virou um sujeito cansado, seus bumbos e pandeiros andam dissonantes como as panelas batendo na hora do "Jornal Nacional". Alguns já não reclamam mais das notícias porque pararam de ver ou ler o noticiário por higiene mental. Outros reclamam de mim, que ando pouco distraído por aqui nos últimos meses.

Vamos até o fim, os garçons começam a virar as cadeiras sobre a mesa do bar. Logo alguém despeja no piso um balde de água, começa a passar o rodo pelo salão. A água suja molha nossos sapatos e desce em ondinhas sobre pedras portuguesas na calçada até um ralo destampado. Já passei por muitos outros naufrágios do tipo, mas sempre havia alguém fugindo da água, de pé sobre uma mesa (normalmente era o Ericson) a discutir, declamar ou traçar planos de destruição criativa (ou criação destrutiva, você entendeu).

Não sei quando viramos cínicos de novo, mas lembro da época em que até as piores maledicências tinham alguma ternura –e que sinal de provecta idade uma frase dessas. Hoje, em bares sem esperança, qualquer pretensão é mercantilizada antes mesmo de virar uma ideia. A água inaugura a manhã nos pés de amigos jornalistas amesquinhados pelo mercado a invejar do outro lado da mesa artistas com mercado e sem ressonância. Ou vice-versa. Reclama-se, reclama-se, reclama-se sem o menor resquício de humor. O naufrágio está próximo, marcado para pouco depois dos Jogos Olímpicos, mas não há nem sequer música para aguardá-lo: as cordas dos nossos pianos e orquestras romperam faz tempo.


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