Folha de S. Paulo


Morte e erotismo

Na reentrância mais profunda da Caverna de Lascaux, uma pintura rupestre traz um homem com cabeça de pássaro caído diante de um bisonte que o enfrenta mesmo eviscerado, atravessado por uma lança. A gruta, em Montignac-sur-Vézère, na França, abriga o que para muitos é o conjunto mais imponente de arte pré-histórica já descoberto. O homem-pássaro caído (estará morto?) integra a "cena do poço", como é conhecida. A composição intriga historiadores desde que foi encontrada por um grupo de adolescentes em 1940. Entre outros motivos, porque o homem com cabeça de pássaro na parede da caverna está, há 17 mil anos, de pau duro.

O último livro que o escritor francês Georges Bataille viu publicado em vida é um assombroso conjunto de ensaios sobre erotismo, morte, religião e arte chamado "As Lágrimas de Eros" (1961). A primeira metade do livro presta-se a elaborar a ideia de que o erotismo surge através do conhecimento da morte. Para Bataille, esse erotismo contrapõe a vida sexual do homem à do animal.

Bataille era fascinado pela Caverna de Lascaux, que visitou muitas vezes. Especialmente pelo "desconcertante enigma" do seu poço, "o mais trágico entre os que a nossa espécie coloca a si própria". Já tinha escrito sobre ela antes, mas sem oferecer à pintura o sentido encontrado nos seus últimos meses de vida. O ensaio usa o homem-pássaro morto ou quase morto (ainda que em estado de vigorosa ereção) e o bisonte em posição de ataque (ainda que agonizante) como ponto de partida.

Estou distraído com o livro, publicado em Portugal pela Editora Sistema Solar, na mais estupefaciente livraria de Lisboa, a Ler Devagar, sobre a qual já escrevi. Chove, o sistema de som toca um disco indie qualquer e as vendedoras são bonitas e extremamente tímidas, como lhes cabe. Vou até o bar, peço uma imperial de um euro e meio e volto a a minha mesa.

Abro o livro numa página ao acaso –é assim que o estou enfrentando– e leio: "A verdade é que a sensação de incômodo ligada à atividade sexual lembra, pelo menos num sentido, a sensação de incômodo ligada à morte e aos mortos. Sempre que tal acontece, a 'violência' excede-nos de uma forma estranha: o que se passa é sempre estranho à ordem estabelecida das coisas, que tem sempre por resposta esta violência." E ainda: "Sermos humanos e vivermos na sombria perspectiva da morte faz-nos conhecer a violência exasperada, a violência desesperada do erotismo."

Sempre preferir ler –e tentar escrever– romances que transitam pela encruzilhada entre sexo, morte e representação cantada aqui pelo Bataille. E quando escrevo representação, quero justamente dizer seu contrário: tentar transmitir o que não pode ser passado adiante. O que não cabe. Na gênese do erotismo e nos limites da linguagem há sempre algo interdito.

Por que estou em Lisboa, lendo Bataille numa livraria, disfarçando meu nervosismo com cerveja e escrevendo banalidades sobre os limites da representação num bloco de anotações à minha frente? Talvez seja uma tentativa de justificar os últimos cinco minutos do meu filme para os que irão na estreia de "A morte de J.P. Cuenca", quinta-feira que vem, dia 8, ou nas outras sessões do longa-metragem no Festival do Rio. E talvez prepará-los, não para testemunhar a cena de uma morte, mas de um nascimento ao contrário.


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