Folha de S. Paulo


Entrar em Gaza

Chega-se ao check-point de Erez depois de uma corrida de táxi de aproximadamente dez minutos desde a cidade de Asquelom, a apenas 50 quilômetros de Tel Aviv. A estrutura parece a de um aeroporto cinzento, mas logo veremos que por trás desse terminal não há aviões e sim uma zona militar.

Na entrada, depois de um painel que anuncia "Welcome to the Erez Crossing", passo minha mochila por um detector de metais na frente de um soldado armado com uma metralhadora. O lugar está deserto. Foi construído para receber 45.000 pessoas por dia, mas não há filas na frente das cabines de imigração. Sou o único que parece querer entrar ou sair de Gaza nessa tarde –poucos palestinos tem autorização para sair, uma política que vem apertando desde 1991, e israelenses têm o acesso proibido. Sem muitas perguntas, a oficial confere meu passaporte, a credencial de imprensa emitida pelo governo israelense –é o que me permite seguir adiante– e me despacha com um sorriso vago.

Deixo o ambiente refrigerado do hangar e agora estou num pavilhão calorento onde caminho por gaiolas e roletas altas. A estrutura lembra a de uma cadeia de segurança máxima. No retorno, atravessarei a construção por outro lado, onde eu e minha bagagem seremos revistados por guardas palestinos, detectores de metal e aparelhos de raio-X. Obedeceremos ordens via interfone. Desde atentados na Segunda Intifada, as autoridades israelenses ficam num mezanino blindado. De lá, observam nosso caminho em zigue-zague por uma série de cancelas cujas luzes passam de vermelhas a verdes. Todos esses mecanismos são remotamente controlados por seres humanos que não vemos. O pequeno alívio cada vez que ultrapassamos um deles nos iguala a hamsters num labirinto de laboratório.

Mas aqui ainda estamos no caminho de ida e a sensação é outra: expectativa e certo cagaço pelo desconhecido. E logo o que vemos, depois da última roleta, é um muro de concreto. Nele há uma porta desgastada de metal que desliza lentamente. Trata-se do único acesso para civis a Faixa de Gaza no momento. Quando a porta abre, não há ninguém. A primeira coisa que vemos é essa gaiola que evolui até transformar-se num corredor cercado de um quilômetro e meio de comprimento.

Dos dois lados das grades há uma planície de mato rasteiro. Ao longe vemos alguns destroços e, do lado israelense, a muralha com torres de segurança. No céu, balões filmam a fronteira. De vez em quando, ouvem-se tiros de advertência. O corredor coberto por um teto de zinco é longo o suficiente para que, no meio, tenha-se a impressão que é infinito.

Mas não é. E chegamos a um galpão com wi-fi grátis e cadeiras de plástico. Estamos em Khamsa-Khamsa, ponto de controle da Autoridade Nacional Palestina, por onde passamos antes de pegar um táxi sem preço definido (paga-se algo em 3 e 10 shekels) até o próximo check-point, este sob responsabilidade direta do Hamas. A fronteira dupla do lado palestino existe porque Israel supostamente não tem comunicação direta com a organização palestina que ganhou as eleições aqui em 2006, daí a entre-fronteira.

A mala então é aberta (procuram material proibido, como bebidas alcoólicas) e o passaporte é retido até que um fixer chegue com uma autorização previamente protocolada no Ministério do Interior. Sem a autorização assinada pelo governo do Hamas, a entrada em Gaza é impossível.

Na manhã de uma quinta-feira de Ramadã, chego ao bairro de Shujaiyeh. Nas ruas empoeiradas vejo dezenas de crianças brincando entre destroços em ruas de terra batida. Não parece que estamos sitiados, e sim num conto de fadas distópico. O fixer diz: "Vê quantas crianças? É gente demais pra eles apagarem." Um milhão e oitocentas mil pessoas numa tripa de quarenta quilômetros de comprimento, pra ser mais exato.


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