Folha de S. Paulo


Jerusalém, Ramallah

Entrando na cidade velha pelo portão de Jaffa, se você seguir em linha reta pela rua de São Marcos, depois de uns cinco minutos de caminhada haverá um beco chamado Habad Street à direita. Ali você encontrará uma escada de metal. Suba a escada. Toda a confusão do mercado e dos turistas desaparecerá enquanto você caminha sobre os telhados de mesquitas, igrejas e do souk. É o único lugar onde Jerusalém, centro das três maiores religiões monoteístas do planeta, conquistada e perdida 44 vezes, parece uma cidade tranquila.

Entre minaretes e campanários vejo o pôr do sol, a luz caindo sobre o Domo da Rocha e, por trás dele, o Monte das Oliveiras. E, também, os telhados e janelas das casas de quem insiste em morar aqui –os judeus com as caixas-d'água brancas, os muçulmanos com as mesmas pintadas de preto, remanescentes do sistema jordaniano. Para muitos, a Palestina começa aqui à leste da cidade, em Jerusalém Oriental. É num dos seus limites onde horas mais tarde vou a um jantar de shabat na casa de israelenses.

Eles moram num dos bairros 'palestinos' da cidade, ou seja, em um prédio em área de assentamento. Ao lado, vizinhos estouram fogos de artifício sem parar –os muçulmanos comemoram a terceira sexta-feira do Ramadã. Aqui, comemos comida judaica e bebemos vinho palestino.

Um dos convidados, um jovem estudando para ser guia de turismo, coloca um disco de Caetano Veloso no YouTube. Está eufórico: acaba de ganhar de presente de aniversário um ingresso para o show. A música brasileira faz parte da vida dos israelenses num tom de nostalgia afetiva que faz lembrar a relação dos japoneses com o João Gilberto.

Comemos um banquete na varanda. A lua cheia e laranja parece um objeto estranho e obsceno na paisagem. Nas colinas do outro lado, o muro separando Israel dos territórios ocupados também.

Nesse mesmo dia, um comandante do exército israelense matou um garoto de 17 anos com três tiros: um na cabeça, um no ombro e o outro nas costas. O garoto estava jogando pedras num jipe que fazia a guarda do check-point de Qalandia, no caminho para Ramallah, capital da Autoridade Palestina. É para onde vou na manhã seguinte.

Ultrapasso a torre-panóptico entre os muros pichados de Qalandia depois de pegar o ônibus 219 num terminal pouco depois da zorra do Portão de Damasco. A viagem de 10 km dura meia hora. Em quinze minutos, já se pode ver a barreira de concreto, arame farpado e câmeras de segurança que acompanha nosso caminho até que passemos para o outro lado.

Depois do muro e de um grande campo de refugiados, Ramallah surge como uma série de prédios em construção e ruas irregulares até o seu centro, a praça circular de Al-Manara. Os focinhos das suas estátuas de leão apontam para as cinco ruas que ligam todos os caminhos da cidade.

Nelas, alguns arranha-céus, hotéis estrelados, painéis de LED e a efervescência capitalista que faz moradores eufóricos chamarem Ramallah de metrópole palestina, pequena Dubai ou Istambul. O exagero é evidente, como também são os indícios de bolha e, hoje em dia, ressaca econômica.

A poucos metros do centro nervoso da cidade, depois de um posto policial semiabandonado, vemos terrenos baldios, pastores conduzindo rebanhos de ovelhas e vendedores de galinha. De qualquer forma, comparada aos quarteirões mais infames e abandonados de Jerusalém Oriental, Ramallah parece uma Times Square árabe.

Termino o dia fumando sheesha num daqueles ruidosos cafés onde mulheres e álcool não são permitidos. Faço parte da minoria que poderá atravessar aqueles muros no dia seguinte.

*

Ainda que acredite ser atestado de bundamolice extrema que Gil & Caetano venham para cá sem pisar na Palestina, não sou a favor do boicote. Afinal, nasci na cidade do Bope e moro na cidade da Rota.

Antes de tudo, eu deveria era boicotar o Brasil. Sem falar que o jeito mais fácil de chegar na Palestina ainda é pelo aeroporto de Ben Gurion. Boicotar Israel seria isolar ainda mais a sua realidade do resto do mundo. E também todo mundo dentro do país que briga pela solução de dois Estados. Não é pouca gente.


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