Folha de S. Paulo


Rolé na cracolândia

Não. De jeito nenhum. Assim me responde o fotógrafo André Liohn quando lhe pergunto se podemos tirar uma fotografia. Estamos atravessando o fluxo, aquela aglomeração de usuários de crack em situação de rua que hoje ocupa a alameda Dino Bueno de uma calçada a outra. Não que André seja inexperiente em situações perigosas: ele fotografou conflitos em guerras na Líbia, Somália e Síria. Já se feriu com estilhaços de bala e já foi feito refém na Turquia. É esse o cara, vencedor do prêmio Robert Capa em 2011, que me pede para não tirar uma foto aqui.

Se Liohn costuma fazer suas fotos em conflitos armados no Oriente Médio sem proteção de exércitos ou milícias, no fluxo do centro de São Paulo eu e ele precisamos da salvaguarda da pastora Nildes, do programa Recomeço. É apenas com ela que conseguimos atravessar aquele quarteirão.

Não fosse pelo estado alterado das pessoas, alguém poderia dizer que estamos num mercado de rua ao lado de uma vala em Cité Soleil, favelão na capital do Haiti. A cena é igualmente pré-moderna: economia de escambo, produtos e seus negociadores semi-nus pelo chão, barracas improvisadas com lonas e cobertores, restos de comida, sujeira e um fedor pestilento. Mas aqui há uma fumaça diferente no ar. Em poucos segundos apenas andando por ali, as narinas começam a arder, os joelhos vacilam e você sente um pequeno coice na nuca. Fumado no cachimbo, o crack chega ao cérebro em vinte segundos e chega a ser dez vezes mais poderoso que a cocaína. E dez vezes mais barato também.

A expressão no rosto de alguns contradiz a miséria da figura: a descarga de dopamina gerada pela droga gera uma sensação de poder e confiança aparentemente inabalável. Alguns deuses, imperadores e rainhas circulam desviando dos corpos no chão oferecendo sorrisos de escárnio com os dentes trincados de prazer. Eles riem uns dos outros, gritam entre si –a impressão é que todos se conhecem. A maioria por ali, no entanto, já está na fissura, quando o crack já não produz o mesmo efeito. Alguns já deitados e imóveis, em aparente rigor mortis no meio da confusão.

Nos quarteirões ao redor do fluxo, há uma circulação mais rarefeita de nóias –e também de policiais, guardas municipais, funcionários da prefeitura, ongueiros, médicos e assistentes sociais. Três vezes por dia, acontece a limpeza. Guardas emparelhados e armados com cassetetes avançam expulsando todo mundo da rua para que garis possam limpar a rua. Na prática, o movimento serve para que eles não ocupem efetivamente o lugar com barracas. Poucos minutos depois, eles voltam para onde estavam, com o asfalto ainda molhado.

Na esquina, por trás de uma grade, há o largo Coração de Jesus, uma praça com um posto policial e quadras esportivas de frente para a basílica e o liceu de mesmo nome. A torre da igreja com o Cristo de braços abertos erguida no início do século 20 faz lembrar a prosperidade cafeeira que atraiu para os Campos Elísios palácios e mansões. E a estação Júlio Prestes –a Sorocabana, inaugurada em 1878– a duzentos metros dali. É curioso que outro crack, o da bolsa de valores em 1929, tenha interrompido o ciclo de prosperidade do bairro.

Trata-se do tipo de cenário extremo e complexo que pode servir de prova ao argumento do freguês. Cada um terá um palpite superficial, mas se poucos nem sequer têm a experiência de atravessar o fluxo, que dirá a de estar na pele de um dos usuários em situação de rua.

Pesquisadores do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Unifesp dizem que 80% dos usuários, apesar do risco, são recreacionais. Ou seja: têm família, trabalham e são produtivos. O que produz a cracolândia não é simplesmente a onda da pedra no cachimbo, mas o desemprego, a vida na rua, a miséria e a marginalização. O vício é mais uma das suas consequências.

A sociedade brasileira é uma fábrica de párias –as mansões do ciclo do café que viraram cortiços ocupados por descendentes de escravos dão seu testemunho. Este aqui é apenas um dos seus nervos mais expostos.


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