Folha de S. Paulo


O corredor polonês do Pari

Ir à feira na Praça Kanuta aos domingos não é apenas visitar a Bolívia. É estar num mercado no subúrbio de Oruro, no altiplano boliviano. A menos de um quilômetro do Estádio do Canindé, é como se tivéssemos subido milhares de metros de altura —e também voltado algumas décadas no tempo.

Talvez sejam os penteados extravagantes que dão forma aos cabelos muito pretos e lisos dos bolivianos, alguns esculpidos ali mesmo, em barbearias com extensos menus de penteados à mostra. Ou a moda discreta das moças, as mesas de pebolim, os cartazes antigos, a música folclórica embalando o movimento ao redor da praça de cidade pequena —casais de mãos dadas, crianças aloprando soltas.

Pouco ali faz lembrar o intenso movimento durante os dias úteis no bairro, um dos maiores polos da indústria de confecções do país. Quando a tarde cai e começamos a devorar chicharrónes, anticuchos e salteñas bebendo uma inca-cola peruana amarelo-radiação, a vida no Pari parece boa e justa, os 200 mil bolivianos que moram na cidade bem adaptados e unidos, novos cidadãos deste ímã imperialista do hemisfério sul, capital econômica da América Latina, importadora de mão de obra e exportadora de grana: São Paulo, terra dos bravos e das oportunidades.

Anoitece e saímos mui bem saciados a tempo de testemunhar a cantilena de uma senhora que empunha um microfone à frente de uma banda de música. São evangélicos de gravata. A mulher chora, dá seu testemunho de superação, marido alcoólatra, o longo caminho dos imigrantes, a graça pelo nome de Jesus etc. Somos poucos os que a escutam, as barracas hora destas já servem suas últimas chichas, algumas apagam a luz.

A feira termina com cones de plástico que separam suas vias organizadas de uma multidão de bolivianos que ocupa a rua escura. À medida que saímos, a voz canastrona da religiosa dá lugar ao balbucio discreto de homens e mulheres que nos cercam num corredor polonês. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar por um discreto oferecimento: cartões com nomes e telefones e peças de roupa como amostras de trabalho.

É o que procuram. Algumas rodinhas de negociação se formam, talvez em torno de coiotes ou gerentes de oficina. Logo se dissipam e se reorganizam. A maioria, no entanto, nem sequer chega a isso. Fica de pé oferecendo sua mão de obra ao vazio ou aos companheiros de infortúnio, do outro lado do corredor de gente. É uma desproporção trágica entre oferta e demanda. Não há brasileiros por aqui.

A experiência boliviana no eldorado paulistano pode incluir passeios e danças em tardes como esta, noites tristes de domingo sem emprego —e também trabalho em regime análogo à escravidão com retenção de passaporte, turnos de 18 horas sem intervalo, pagamento por peça ganhando menos de um salário mínimo por mês, aluguel de imóveis negado por nacionalidade, crianças pagando proteção nas escolas, adultos pagando proteção em favelas —racismo, hostilidade, violência e exploração.

Anoitece no Pari. As ruas rudes e obscuras da cidade ultrapassam o Rio Tietê, elevam-se pelos Jardins até o planalto iluminado da avenida Paulista, onde manequins vestem peças de roupas cerzidas em oficinas invisíveis.


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