Folha de S. Paulo


O Purgatório da Bento Freitas

Amanhece o domingo cinza. Um homem está deitado no meio da via, na altura da rua General Jardim. Um grupo de travestis caminha até ele, tenta salvá-lo do iminente atropelamento. O sujeito levanta o pescoço e vê o cilindro branco do antigo hotel Hilton no topo da rua. Não. O que ele vê é um foguete da Nasa, um churros gigantesco, um canhão apontado para o céu. E grita com o dedo em riste: "Foguete, churros, canhão!"

As meninas o arrastam com dificuldade até a marquise do prédio modernista do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil), na esquina onde fazem ponto. Andares acima dali, durante o dia, trabalha silenciosamente Paulo Mendes da Rocha, na realidade paralela de seu escritório sem computadores. Agora na mesma calçada há um forte cheiro de mijo e movimentos de obstinada agitação entre o hotel Kim, uma boate sem fachada, um galpão de sucata, um bar azul escuro e o hotel Tenda. Do outro lado da rua, o Três Corações, um boteco, algumas portas e janelas fechadas.

O batidão que sai dos inferninhos é indiferente ao amanhecer. Na porta de cada um, rodas de gente acordada demais. Falam aos berros, beliscam-se como caranguejos, compram cerveja dos ambulantes, barganham a última linha, tentam arrumar companhia para entrar num daqueles hotéis –voltar pra casa não é uma hipótese. Ainda que hora dessas já sejamos todos semiprofissionais, a maioria irá falhar.

Ao redor destes grupos, orbitam homens cansados, carregando sacolas pretas. Eles as alimentam com latas e garrafas que deixamos para trás. Aceitam também um cigarro quase guimba, que ajuda a fazer o tempo passar. Outros não bebem nem catam garrafa, não vendem, alugam e tampouco compram nada –estão ali para mosquear. A mistura de prontuários, tipos e intercambiáveis orientações sexuais lembra o Baixo Augusta antes da gourmetização noturna que trouxe aqueles poleiros de concreto com nomes moderninhos e janelas minúsculas riscando o céu.

Na quadra acima da Bento Freitas, os estabelecimentos L'Amour (um puteiro) e 355 (dizem que se chama Shiva) tem sido alugados para festas cujo público carrega mais dinheiro, moda e pretensões de arte que o usual por ali. Os ambulantes e as simpáticas aviões da área têm ajustado os preços de acordo. O movimento ainda parece fora da mira de empreendedores noturnos profissas –e é bom que assim continue, pois o purgatório resistirá à faca.

Poucas horas antes, num microcosmo berlinense por trás da fachada pintada de preto, uma compacta multidão de iniciados acompanhava os graves baixo-ventre e os baixos vertiginosos de Paulo Tessuto, vulgo Carlos Capslock, às da madrugada eletrônica desta e de outras pistas. Entre idas e vindas ao rubro Baiuca's Bar, do outro lado da rua –onde alimentamos nossos subversivos instintos, a jukebox e tiramos fotos idiotas– este é o melhor lugar para se estar. Não é verdade, evidentemente, mas é o que decidimos acreditar naquela noite, colados demais, eu e vocês duas, os suores misturados sob a luz estroboscópica, mãos e tentáculos enredados à beira do precipício etc.

Mas isso tudo tem que acabar. Logo ultrapasso o homem que vê coisas no cilindro branco do antigo hotel Hilton, vejo que ele dorme aninhado a uma garrafa de plástico na calçada, e me esforço para ganhar os poucos metros que tenho até a minha cama enquanto o sol nasce gelado –ou talvez o frio seja meu.


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