Folha de S. Paulo


Ódio a bordo

Antes mesmo da decolagem, as fronteiras começam a ser demarcadas na silenciosa batalha dos cotovelos pelo apoio do braço das poltronas. Pouco abaixo deles, outra disputa: entre o seu e o joelho do passageiro ao lado. E também contra o passageiro sentado à frente. Este reclina o encosto até sentir, no meio das costas, a pressão das suas patelas. Há uma vingança, porém: você pode cochilar sobre a mesa e acordar com o mesmo passageiro esmagando sua cabeça numa reclinada violenta. E aí é hora de apelar para os cutucões sem sutileza na tela touchscreen presa às costas do inimigo.

A irritação contra o anônimo costuma ser poderosa –é fácil projetar nele a soma dos nossos antagonistas e frustrações.

Como os seres humanos, ao contrário do espaço interno dos aviões, andam cada vez mais altos e pesados, voar hoje é proteger e conquistar territórios –como se já não bastasse o confinamento com estranhos a mais de 10 mil metros de altitude numa caixa de metal cujo funcionamento desconhecemos.

Multiplique isso por 12 horas no voo sobre o Atlântico e adicione comida ruim, ar viciado, filas, aparelhos de raio-X, revistas e a espera por um carimbo no passaporte na partida e na chegada. Se você não faz parte da minoria que pode pagar por um bilhete na executiva e salas VIP em aeroportos, nada indica que viajar ficará mais confortável.

Ao contrário. No início deste mês, durante uma feira de aviação comercial em Hamburgo, foi anunciado o novo design de cabine do A380, o gigante superjumbo da Airbus que oferece cabinas privativas, parecidas com as de trem, para passageiros de primeira classe. A companhia somou uma poltrona às dez já existentes na classe econômica sob a justificativa de tornar o voo mais eficiente, um novo eufemismo para lucrativo.

A fileira do meio agora pode ter cinco assentos. As outras continuam com três de cada lado. Cada poltrona tem exatamente 18 polegadas de largura, a média da distância entre os ombros de um ser humano. O descanso de braço desse modelo de cabine mal serve de apoio para um único antebraço. Se for usado, obriga que o passageiro ao lado viaje com os braços cruzados. Ou abraçadinho. A inovação está prevista para 2017, ainda que inicialmente apenas como opção de configuração da cabine. (Veja a foto que tem panicado viajantes frequentes aqui.)

Descontando o que isso deve representar para a segurança do voo em caso de acidente, a falta de espaço já nos modelos atuais fez com que alguns aviões nos Estados Unidos tivessem que alterar a rota de voo. Apenas em uma semana de setembro de 2014 três brigas entre passageiros causaram pousos não planejados dentro do país, em voos da United, da Delta e da American Airlines. Muitas das brigas são provocadas por um acessório vendido por lá –um par de travas que, instaladas na mesa retrátil, fazem com que a cadeira da frente não possa reclinar. Custa US$ 22 –por sua conta e risco aqui.

Se algumas boas almas dizem que reclinar o assento na classe econômica é egoísmo, outros replicam que esse direito está incluído no preço do bilhete. O fato é que mesmo com esse tipo de conflito banal desviando aeronaves de mais de 300 toneladas, a indústria não dá sinais de ceder –a menos que haja uma revolta de consumidores. Ou que um avião caia numa guerra de travesseiros e mantas.


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