Folha de S. Paulo


A síndrome de anti-Dorothy

Sempre sofri do que alguns amigos chamam de síndrome de anti-Dorothy –qualquer lugar é melhor que o meu lar. Costumo sentir falta não da minha casa, mas de tudo o que vou deixando para trás nas viagens. Essa saudade ao contrário da terra natal os alemães chamam de Fernweh. No meu caso, uma busca incessante pelo porto definitivo, ainda que no fundo eu saiba que este lugar não existe. Ou, se existir, é a morte.

Até hoje, esse sentimento me empurrou para longas e exóticas temporadas no exterior, onde vivi muito além das minhas fronteiras físicas e emocionais, esgotando recursos e queimando pontes como um bon vivant camicase.

Grande parte dessas viagens foram patrocinadas por encontros literários, publicações ou trabalhos no estrangeiro e sempre as prolonguei seguindo critérios imprudentes e aleatórios. Assim, estou acostumado a encontrar um motorista de quepe me esperando no aeroporto para me levar a um hotel cinco estrelas e, na semana seguinte, viajar em condições precárias, alugando muquifos, dormindo em sofás e me locomovendo no improviso. Da opulência para a pobreza, já reproduzi muitas vezes a decadência de aristocratas da cobertura ao quitinete. Não no espaço de décadas, mas de um dia para o outro.

Ainda assim, nada foi capaz de me preparar para St. Martin, no caribe francês. Fui com um pequeno grupo de jornalistas convidados pelo governo da ilha para uma viagem de divulgação –escreverei em breve a devida reportagem, mas, como crônica não é jornalismo, aqui os temas (e as liberdades) são outras.

Formávamos um time heterogêneo que se conheceu ainda no saguão do aeroporto, na parte holandesa da ilha. Os únicos homens: eu e um jovem carioca, eleitor de direita, fã de "BBB" e futebol americano. Dizia preferir Mc Donald's à comida francesa com temperos cajun que nos esperava. As moças eram menos idiossincráticas, infinitamente mais delicadas que nós dois e, logo no primeiro dia, ficou claro que eu era o alcoólatra do grupo. Ficamos no único hotel cinco estrelas de St. Martin e, por cinco dias e cinco noites, fomos mimados como lordes. Eles nos entupiram gloriosamente de vinho e comida. Nos intervalos, mosqueamos em praias desertas e passeamos de barco sobre águas em tons de turquesa. (Observação: o meu Instagram costuma ficar cheio de fotos do mar do Arpoador, no Rio, com observações do tipo "o Caribe é aqui!". Não é.)

O banheiro da suíte no La Samanna tinha o tamanho do meu apartamento. Se o interior meio genérico fazia aquilo lembrar um hotel de rede norte-americano, o serviço impecável, a grandiosidade da varanda e sua vista sobre a Baie Longue devem justificar o preço de US$ 2.500 a diária. Não pude evitar comparar esses valores com o naufrágio financeiro que me esperava no Brasil.

Depois de inesquecível missão marítima houve um portentoso jantar com vinho e espumante. Era a última noite. Voltei embriagado de tudo aquilo ao hotel. Deixei a janela e a varanda abertas e dormi sob o lento chacoalhar das ondas. Tive sonhos grotescos, como costuma acontecer, e num deles eu morava em St. Martin, muito feliz e apaixonado pela ilha que reúne mares caribenhos, cozinha francesa e jovens de topless.

Dentro do sonho, eu confessava a amigos na praia que estava curado da síndrome de anti-Dorothy e nunca mais iria a lugar nenhum, enfim, morreria feliz no meu veleiro agora ancorado na ilha de St. Martin. E depois ia mergulhar, furando ondas como um menino.

A cama king size e seu lençol de algodão egípcio 1.500 fios acordaram mijados na manhã seguinte.


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